Virna Alencar
11/05/2019 15:06 - Atualizado em 15/05/2019 20:54
O Ministério da Saúde (MS) decidiu abolir o uso do termo “violência obstétrica” e afirmou, em um despacho divulgado no início deste mês, que “estratégias têm sido fortalecidas” para que a expressão pare de ser usada pelo órgão. A explicação, segundo o documento, é de que o termo é inadequado por que “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”. Mas para organizações que estudam e combatem a violência obstétrica, em Campos, a normativa pode deixar mulheres mais vulneráveis.
Segundo a doutora em Sociologia Política e atual presidente da Fundação Municipal da Infância e Juventude (FMIJ) de Campos, Sana Gimenes, no Brasil, pelo menos uma em cada quatro mulheres já sofreu algum tipo de violência, antes, durante ou depois do parto, perpetrada por profissionais de saúde, tanto em hospitais públicos, como em privados. “Essa violência, especificamente chamada de violência obstétrica, pode ser caracterizada como um tipo de violência de gênero e não se refere apenas à violência física, como a realização de intervenções médicas inadequadas, ou não autorizadas, que podem levar a danos corporais, mas também à violência psicológica, ou ao desrespeito de garantias legais que as gestantes podem sofrer”, disse.
Representante do Conselho Regional de Psicologia no Conselho Municipal de Direitos da Mulher (Comdim), a psicóloga Conceição Gama também falou sobre o tema. Segundo ela, violência obstétrica pode gerar trauma, acarretar em dificuldade no aleitamento materno, gerar uma depressão pós-parto, entre inúmeros danos emocionais possíveis à mulher. “Trata-se uma forma grave de violência contra a mulher, que viola os direitos humanos e deve ser combatida através de denúncias, leis específicas para garantia de um atendimento humanizado e respeitoso a díade mãe e bebê. Abolir o termo é invisibilizar uma violência que acontece com muita frequência. Uma em cada quatro mulheres relata ter sofrido algum tipo de violência obstétrica. Precisamos falar sobre isso. Pensar em estratégias de eliminar essa violência, pensar em políticas públicas para garantir direito às parturientes. É através dos dados que podemos pleitear mudanças”, disse.
Com a retirada do termo feito pelo MS, uma cartilha será elaborada pelo Comdim com a colaboração de mulheres da sociedade civil organizada da cidade, que atuam na área e também que já passaram por algum tipo de violência obstétrica.
A médica obstetra Leila Werneck informou que algumas condutas como o uso de alguns medicamentos e a própria episiotomia (corte feito no períneo no desprendimento do feto) muitas vezes são necessários, mas, como a paciente não sabe o motivo julga que foi violada em seus direitos sobre o próprio corpo. “A partir do empoderamento das mulheres e, consequentemente, abertura para as suas falas, sabemos que estamos em um caminho sem volta em que os seus direitos e deveres devem ser respeitados e que a voz da escolha do seu tipo de parto (desde que não haja contraindicação) seja respeitada”, disse.
Em casos de violência, vítimas podem procurar o MS/ Ouvidoria do SUS, através do telefone 136, ouvidoria do hospital e até mesmo abrir uma ação judicial através da Defensoria Pública.
Mulher conta drama vivido há 21 anos
Uma mulher, que preferiu não ser identificada, contou que há 21 anos, foi vítima de violência obstétrica e não sabia. Segundo ela, certos padrões de comportamento, que caracterizam a violência, chegam a ser passados de geração em geração como se fossem normais. “Quando era mais nova, mamãe sempre dizia: ‘no dia que tiver que ir para hospital para ter filho, se for para um hospital público, não grita, não reclama de dor, senão eles te maltratam’. Quando entrei em trabalho de parto, não tinha dilatação, minha filha jamais nasceria de parto normal, mas me colocaram no soro com ocitocina e passei cinco horas sofrendo com contrações, com dois centímetros apenas de dilatação. Completamente inútil todo o sofrimento que tive”, contou.
Para ajudar a mulher a ter uma experiência melhor no trabalho de parto, Isabela Pereira dos Santos, que trabalha como doula, explicou que o trabalho visa proporcionar o melhor bem estar possível para a família, com foco na mulher, a partir de informações e técnicas específicas.
— Nós atuamos com técnicas de alívio não farmacológico da dor, no momento do parto, com apoio emocional e físico, com massagem e também com incentivo. Explicamos como funciona o mecanismo do parto para que entenda como esse evento acontece no corpo dela. Explicamos quais são as fases do trabalho de parto, o que é a dor de uma contração e os sentimentos que ela possivelmente irá sentir. Nesse sentido, munimos a mulher de informações e ajudamos ela achar uma equipe que esteja de acordo com as evidências científicas. Compreender tudo isso ajuda esse processo evoluir de uma forma mais rápida, pois ela passa saber qual a melhor hora para descansar e para estar ativa, por exemplo — disse Isabela ao ressaltar que este profissional não pode interferir na conduta da equipe técnica, sendo um trabalho muito mais informacional.
Órgão federal fala sobre critérios usados
Sobre o termo “violência obstétrica”, Sana Gimenes disse que é amplamente utilizado pela literatura especializada em todo o mundo e já está até tipificado como crime em determinados países. “A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a violência obstétrica como uma grave violação aos direitos humanos das mulheres. Desse modo, causa horror que o Ministério da Saúde brasileiro decida, sem nenhum embasamento técnico, abolir o uso dessa expressão, o que parece apenas atender a posição ideológica do lobby de certos profissionais de saúde”, disse.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que “as orientações sobre o uso do termo ‘violência obstétrica’ foram publicadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em outubro de 2018, pelo parecer CFM 32/2018. A entidade é responsável pela regulamentação da atividade médica no país. Acompanhando a instrução e atendendo ao apelo de entidades médicas, o Ministério da Saúde publicou despacho no qual orienta que o termo ‘violência obstétrica’ não deve ser usado de maneira indiscriminada, principalmente se associado a procedimentos técnicos indispensáveis para resolução urgente de situações críticas à vida do binômio mãe-bebê relacionados ao momento do parto”.
O órgão ressaltou ainda que “o Ministério da Saúde pauta todas suas recomendações pela melhor evidência cientifica disponível, guiadas pelos princípios legais, pelos princípios éticos fundamentais de cada categoria profissional, pela humanização do cuidado e pelos princípios conceituais e organizacionais do Sistema Único de Saúde. As estratégias adotadas visam reforçar o compromisso de fortalecer e qualificar o cuidado humanizado no país”, finalizou.