Ainda não apareceu, nas Américas, um compositor com o talento de Villa-Lobos, decorridos sessenta anos de sua morte. Esse é o meu entendimento de ouvinte apreciador de música erudita. O próprio Villa-Lobos costumava dizer que suas composições eram para ser executadas e ouvidas, não para serem analisadas. Composições para serem executadas e ouvidas, agradando o leigo de ouvido apurado. É como leigo que escrevo esse artigo.
Villa-Lobos nasceu no Rio de Janeiro, em 5 de março de 1887, não se sabe ao certo, na cidade onde também morreu, em 17 de novembro de 1959, havendo certeza dessa data. Mas continua mais vivo do que nunca em todo o mundo. Hoje, ouve-se Villa-Lobos tanto na China quanto na Alemanha. Desde jovem, ele manifestou fantástica vocação musical, aprendendo a executar instrumentos por conta própria. Embora tenha estudado na Escola Nacional de Música (hoje, da UFRJ), Villa-Lobos abriu seu próprio caminho, fazendo experiências com sonoridades e chocando os ouvidos educados.
Villa foi um selvagem da música. Ele imitava, em suas composições, cantos de aves, sons de trens, piar de pintos, borbulhar de cachoeiras. Sons bárbaros. No meio da balbúrdia do entorno, ele compunha peças magníficas, explicando seu segredo: o ouvido externo não afeta o ouvido interno. Seus críticos o acusavam de não elaborar suas composições, deixando que elas permanecessem como saíam de sua genialidade. Hoje, o entendimento é que, se Villa-Lobos elaborasse suas composições e exercesse autocrítica sobre elas, a beleza das melodias, dos ritmos, das harmonias, dos timbres, das texturas, dos contrapontos, teria se perdido.
Era melhor deixar as músicas do jeito que saíam da sua lavra: bárbaras, imperfeitas e lindas. Villa-Lobos visitou todos os gêneros musicais: ópera, opereta, poema sinfônico, sinfonia, concerto, música de câmera, música solo etc. Sua genialidade não se manifestava apenas na composição, mas nas formas inusitadas e no uso de instrumentos, alguns dos quais ele inventava.
Não se pode abarcar a obra vasta do compositor num pequeno artigo, mesmo que não haja pretensões de especialista. Quem o escreve é apenas um admirador de música e de Villa-Lobos. É preciso, pois, cingir este artigo a algum aspecto da obra do genial compositor. Escolhi as composições que ele dedicou a instrumentos de sopro. Claro que esses instrumentos estão presentes nas músicas orquestrais de Villa-Lobos, dando a elas um colorido próprio, até hoje inimitável. Villa era um grande orquestrador. Refiro-me, particularmente, à música que ele dedicou a instrumentos de sopro, mesmo àquelas composições em que tais instrumentos se misturam a instrumentos de outros naipes.
A primeira peça é o curioso “Sexteto místico”, de 1917. Villa-Lobos estava ainda influenciado pelo impressionismo francês quando o compôs. Para conferir o clima exótico a que se propunha, ele formou um conjunto inusitado de instrumentos: de um lado, harpa, celesta e violão; de outro, flauta, oboé e saxofone. A forma tradicional é mantida: um movimento animado, um lento e o final animado novamente. Ouço esta peça desde adolescente e, a cada audição, percebo novas nuances.
O trio para oboé,clarinete e fagote, de 1921, é composição marcada pela polirritmia e outras experiências que o compositor fazia. Suas dissonâncias chocavam os ouvidos educados nos cânones da música erudita. Villa-Lobos fazia aqui o que Stravisnky fazia na Europa, talvez com mais arrojo.
O choro número 2 (1924), para flauta e clarinete, é uma composição típica da primeira fase de Villa-Lobos. Em dois curtos movimentos, flauta e clarinete ora dialogam, ora falam juntos, ora um instrumento marca o ritmo para o outro. Existe claramente uma melodia como segundo movimento. A peça é curta, com duração de 3:15 minutos. O choro número 4, de 1926, para três trompas e trombone, é mais complexo. A combinação de instrumentos é inusitada, bem ao estilo de Villa-Lobos. A peça dura 5:40 minutos e se divide basicamente em dois movimentos. O primeiro é denso e sombrio, com os quatro instrumentos tocando em conjunto. O segundo é constituído por um ritmo brasileiro, em que um instrumento executa a melodia e os outros fazem o acompanhamento.
Dessa fase é também o quarteto para oboé, clarinete, fagote e flauta, de 1928. A composição se insere na linha das anteriores. Seu terceiro movimento é melodioso e se destaca pelo contraponto. Normalmente, o quarteto é uma forma para primeiro violino, segundo violino, viola e violoncelo. Villa-Lobos mantèm a forma, mas troca de naipe e instrumentos. O naipe é madeira e os instrumentos de sopro são os mais conhecidos numa orquestra.
O “Quinteto em forma de choros” é um legítimo quinteto de sopro, formado por flauta, oboé, clarineta, fagote e trompa. Trata-se de uma forma consolidada no século XVIII pelo classicismo. Mozart tem composições para quinteto.Composto em 1928, trata-se de uma peça bastante conhecida e apreciada. Tenho dela duas gravações, a mais carinhosamente guardada sendo a que me presenteou o fagotista Noel Devos nos anos sessenta. Foi gravada pelo Quinteto de Sopro da Rádio MEC. A obra tem três movimentos. A composição também é clássica pelos movimentos: o primeiro e o terceiro animados e o segundo lento. Fora isso, Villa-Lobos deixa nela seu forte traço. Nos três movimentos, há melodia perceptível, embora inimitável se tentamos cantarolá-laou assobiá-la. A harmonia e o contraponto, além das dissonâncias não o permitem. Na música de Villa-Lobos, não há vazios de tempo. Sempre um ou mais instrumentos estão tocando no que seriam buracos musicais em muitos outros compositores. Há até compositor que valoriza o silêncio, como John Cage. Não há também um instrumento que se sobressaia aos demais.
O quinteto se insere na primeira fase da música de Villa-Lobos, visivelmente marcada pelo experimentalismo. Todas as composições mencionadas aqui são caracterizadas pela dissonância fricativa e rascante, por uma aspereza que agride os ouvidos bem-educados. Para fins didáticos, eu diria que esta fase termina em 1930, em números redondos. Nela estão inseridos os famosos “Choros”, composições rebeldes que vão de um instrumento solo a uma orquestra completa acompanhada de coro misto, como o genial “Choros nº 10. Dai em diante, a música de Villa-Lobos torna-se mais melodiosa e acessível aos ouvidos leigos. Dessa fase, são as “Bachianas” e a música feita sob encomenda. Isso não significa que Villa tenha se rendido ao mercado e foi domesticado. Sua barbárie apenas entra numa nova fase, como se saísse do paleolítico e ingressasse no neolítico. Daremos continuidade ao artigo proximamente.