— E aí, Afrânio, tudo bem?
— Driblando a morte, e você?
— Eu vou muito bem, cara. Toma uma cervejinha?
— Não posso mais. Proibição médica.
— Kaylane está no quarto com Lucas, seu namorado, ouvindo música. Vai lá falar com ela.
Fui lá. “Oi, tio” (Não sou seu tio. Sou apenas amigo do pai dela. A começar pelo nome, Kaylane é uma típica moça de nosso tempo. Nos seus 18 anos, eu poderia dizer que é bonita. Cabelos lisos e pintados na altura dos ombros. Rosto harmônico. Vestido colante e curto, acentuando as suas curvas e mostrando as cochas. Não a vejo com frequência, mas sempre tenho a impressão de que ela vive fazendo biquinho para selfies postadas nas redes sociais. Seu corpo tem tatuagens nos braços e nos tornozelos. Ao lado do pé esquerdo, a tatuagem diz “Te amo, Jesus”.
Lucas, seu namorado, parece um combatente do Estado Islâmico. Barba longa e pontuda. Cabelo raspado à moda recruta, algo que os recrutas não são mais obrigados a fazer. Um topete alto e armado como uma plataforma de concreto. Se Kaylane tem parte do corpo tatuado, as tatuagens de Lucas parecem uma roupa colada ao corpo. Os dois assistem a uma dupla sertaneja na televisão. Ambos cantam fanhosos uma melodia igual a muitas outras. Só entendo ambos dizerem para o público jogar as mãos pra cima, e mostram como as pessoas devem balançá-las de um lado pra outro.
— Tio, você gosta de sertanejo (o “tio” me irrita, mas me contenho. Afinal, Kaylane é uma boa moça e filha de um amigo meu)? Enquanto penso em como responder “não” com polidez, ela se sacode com o namorado.
— Olha, Kaylane, talvez seja um gênero interessante, mas não é do meu tempo. Então...
— Já sei, não gosta. E desse (muda para pagode e continua se sacudindo com o namorado).
— Você gosta? Pergunto.
— Não tanto quanto sertanejo e funk. Ouve só esse (e muda de canal novamente. De canal ou de vídeo, não sei). Respondo que os gêneros são fenômenos sociológicos que merecem estudo. Arrisco a ir adiante. Sertanejo, pagode, funk são produtos da indústria cultural. Existem grupos empresariais que compõem umas quatro melodias diariamente. As duplas ou o intérprete procuram esses grupos e escolhem o que mais lhes agrada. Como numa feira.
— Como assim indústria cultural, tio?
— São grupos que funcionam como fábricas de música. Elas são compradas e cantadas. Nem CD mais é necessário. Basta lançar música por música em meios eletrônicos. As pessoas cantam e dançam sem saber por que. Um mês depois de lançada, a música é descartada e substituída por outra, como um refrigerante ou um sanduíche. (O namorado não fala nada. Só ouve. Parece não entender nada ou discordar). Você não se lembra mais de um sertanejo de que gostou há um ano.
— Mas é assim mesmo, tio. Música é pra gente curtir, dançar e esquecer. E você, afinal, gosta de música?
— Gosto.
— De qual?
— Melhor não falar sobre isso. Se vocês quiserem, posso mostrar músicas das quais gosto na minha casa. Apareçam lá um dia.
Beijinho pra cá, beijinho pra lá. Aperto de mão. Saí. Abracei Walter, o pai de Kaylane e fui embora. Não é que ela e o namorado apareceram na minha casa três semanas depois do nosso encontro para conhecer meus gostos? Levei os dois para o quarto em que ouço minhas músicas e comecei com composições de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Milton Nascimento.
— Que isso, tio?
— Um CD que vou colocar no aparelho de som.
— Sei, mas não tem televisão aqui? A gente não vai ver eles cantando?
— Música é para ouvir e não para ver.
— Mas na TV eles cantam com banda e bailarinos. Mandam a gente cantar junto...
— Pois é, Kay (já pegando intimidade), dança não é música.
Comecei de leve, com Caetano Veloso na sua apresentação com os filhos. Coloquei o vídeo do show, já que eles queriam imagem. Minha TV é antiga e eles não a reconheceram.
— Tio, não leva a mal, mas eles são muito devagar. Até aquela dancinha do pai com o filho é coisa meio brega. Eles podiam incrementar mais.
O namorado nada dizia. Passei para a bossa-nova, ainda com imagem. Eles detestaram Tom Jobim. Acharam sua música velha. Fui para Pixinguinha, não mais esperando que gostassem, mas que soubessem da existência de um tipo de música diferente do rock brasileiro (do qual também não gostaram, assim como eu não gosto).
Resolvi entrar no erudito de leve. Comecei com “No jardim de um mosteiro”, Ketelbey, música leve e bastante cafona.
— Tio, o que é isto?
Eu colocara um disco de vinil no aparelho. Ela ficou pasma de existir algo assim.
— Não leva a mal, tio, a música é muito estranha.
Dei um pulo bem grande no tempo e coloquei um dos seis concertos de Brandenburgo, de Bach, agora em CD.
— A gente não usa mais isso, tio. Agora é tudo em plataforma digital. Isso é música mesmo ou barulho feito com instrumento? Parece até música de comercial de televisão. Na minha casa, tio, você disse que a música sertanejo e funk deve ser respeitada por serem fenômenos o que mesmo?
— Sociológicos, completei eu.
— E essa música que você gosta?
Respondi que também era. Que muitos compositores apareceram em todas as fases e que só restaram aqueles que eram talentosos.
— Você também falou que a música que eu e Lucas gostamos é produto da o quê?
— Da indústria cultural. Ela é feita para ser consumida e ser esquecida.
— E essa que você ouve não é não? Essa é tão esquisita que nem dá pra ouvir. Parece comida estragada que a gente joga fora sem provar.
— De fato, desde o século XV, a produção cultural está associada ao mercado. Só que algumas obras de arte conseguem escapar do seu tempo por serem feitas por artistas geniais.
— Tá bom, tio. Vamos fazer um trato: você fica com sua música e a gente fica com a nossa.