A mais antiga escritora do mundo
25/04/2019 22:10 - Atualizado em 27/04/2019 11:51
Por Adelia Noronha
Se as feministas conhecessem Enreduana ou Enheduana, certamente a reivindicariam como a mais antiga feminista da história. Isso se ela já não é reivindicada como fundadora do movimento e eu ainda não tenho conhecimento.
Enheduana foi uma das filhas do rei Sargão, de Acad, um dos primeiros governantes a fundar um império, na civilização mesopotâmica. Ele uniu várias das cidadesEstado, que se distribuíam nos eixos Tigre e Eufrates, os dois principais rios que permitiram o desenvolvimento da civilização mesopotâmica entre 2500 e 100 anos antes de Cristo. Lugalzagisi havia também promovido uma breve unificação política das cidades-estados antes de Sargão, que o derrotou.
Supõe-se que Enheduana tenha nascido exatamente há 2.300 a. C, quase coincidindo com os primórdios do império sargônida. Seu nome significa algo como Adorno do Céu (en=sacerdotisa+heduana=nome poético para a lua). Ela foi alta sacerdotisa do deus lunar Nana ou Anu ou Innana em Ur. Seu cargo de sacerdotisa foi exercido no reinado do seu irmão Rimush. Viveu um período de turbulência, foi banida do templo e voltou a ocupar o cargo de alta sacerdotisa.
Depois de sua morte, ela ganhou um caráter semidivino, o que não era raro nas civilizações antigas. Veja-se o caso de Gilgámesh. Consta que ela foi a primeira mulher a estampar o título de En, o que representava o exercício de um papel de grande importância política, algo que acontecia nas civilizações em que o sagrado não está totalmente separado do profano. Suas filhas igualmente gozaram de suas regalias.
Enheduana escreveu muito e nos legou coleções de hinos, vários deles dedicados à deusa Inanna.Deixou também uma coleção de hinos conhecida como “Hinos Sumérios do Templo”. Ela viveu num tempo em que a língua suméria começava a ser suplantada pelo acadiano. O sumério é uma língua de origem asiânica muito antiga. Alguns a relacionam ao húngaro, ao etrusco e ao basco. Ela não é mais falada. Os sumérios criaram a primeira civilização e o primeiro sistema de escrita. Os sinais têm forma de cunha. Daí seu nome de cuneiforme. Como não havia pedra no sul da Mesopotâmia, a escrita era grafada em tabuinhas de argila.
Quando povos semitas invadiram a Mesopotâmia, suas línguas se utilizaram da escrita cuneiforme. O acadiano é uma língua semita. O cuneiforme foi um sistema que vigorou até o século I antes de Cristo. Ur parece ter sido uma cidade que resistiu ao avanço do acadiano. A vida de Enheduana foi bastante documentada em textos e em objetos. Existe uma estátua sua encontrada em Giparu datada de um período entre 2000 e 1800 a. C.
Com base em trinta e sete tábuas de argila encontradas em Ur e Nippur, os hinos de Enheduana puderam ser reconstituídos. Os poemas religiosos de Enheduana em tantos textos levantam a questão da alfabetização feminina na antiga Mesopotâmia.Além de Enheduana, as esposas reais são conhecidas por terem talvez composto poesia com certa frequência.Havia, no panteão sumério, a deusa escriba Nidaba, revelando a importância cultural das mulheres e seu papel na sociedade da época.
Ilustremos o artigo com alguns poemas de Enheduana. No hino a Innana, ela escreve: “Senhora de todas as essências, luz plena,/boa mulher vestida de esplendor/a quem o céu e a terra amam/amiga do templo de An,/ você carrega grandes ornamentos,/ você quer a tiara da alta sacerdotisa/ cujas mãos seguram os sete cenários,/ Minha senhora, guardiã de todos os grandes eventos,/ você escolheu e pendurou/da sua mão./ Você juntou as essências sagradas e as colocou/apertado em seus seios.”
Em Inanna e Um, ela escreve: “Como um dragão você cobriu o chão/de veneno./Como o trovão quando você rugir na terra,/ árvores e plantas caem à medida que você vai./ Você é uma inundação descendo de uma montanha,/ Oh, deusa lunar do céu e da terra!/ Seu fogo sopra e cai sobre a nossa nação./Senhora montada em uma fera/ Um lhe dá qualidades, ordens sagradas,/ e você decide./ Você está em todos os nossos grandes ritos./ Quem pode entender você?”
Para Inanna e Enlil: “Tempestades te dão asas, destruidor de nossas terras./ Amado por Enlil, voa sobre nossa nação./ Você serve os decretos de An./ Oh, minha senhora, quando você ouve seu som/colinas e planícies reverenciam./ Quando nos apresentamos a você,/ aterrorizados, tremendo em sua luz clara e tempestuosa,/ nós recebemos justiça./ Nós cantamos, nós choramos, e choramos diante de você/ e caminhamos em sua direção por um caminho/ da casa dos imensos suspiros.”
No hinopara Inanna e Ishkur:“Você derruba tudo em batalha./ Minha senhora em suas asas/ você carrega a terra cortada e ramificações mascaradas/ em uma tempestade de ataque,/ você rugiu como uma tempestade,/ troveja e você continua trovejando, e você bufa/ como ventos malignos./ Seus pés estão cheios de inquietação./ Na sua harpa dos suspiros/ Eu ouço sua música fúnebre.”
Quanto à Inanna e a cidade de Uruk: “Você disse seu mandato sagrado sobre a cidade/quem não declarou:‘Esta terra é sua’/ quem não declarou: ‘Pertence ao seu pai e ao pai do seu pai’/e você bloqueou a passagem deles para você,/ você levantou o pé e abandonou/ seu celeiro de fertilidade./ As mulheres da cidade não falam mais sobre amor/ com seus maridos./ De noite, eles não fazem amor.Eles não estão mais nus na frente delas,/ revelando tesouros íntimos.// Grande filha de Suen,/ vaca selvagem impetuosa,/ comandante supremo de An,/ Quem não se atreve a venerá-lo?”
Sobre seu infortúnio, ela escreveu um poema: “Estava ao seu serviço/ Que entrei pela primeira vez/ No templo sagrado./ Eu, Enheduanna,/A princesa mais alta./ Ele carregou a cesta ritual,/ Eu cantei seu louvor./ Agora eu fui jogada/ Para o lugar dos leprosos./ O dia chega,/ E a luminosidade/ Está escondido ao meu redor./ Sombras cobrem a luz/ O entapizan em tempestades de areia./ Minha linda boca só conhece confusão./ Até meu sexo é cinza.”
Roger Mello e Mariana Massarani escreveram e ilustraram um livro infantil intitulado “Enreduana” (São Paulo: Companhia das Letrinas, 2018). Que eu saiba, é o único título em português sobre a sacerdotisa-poeta da Mesopotâmia, considerada a mais antiga do mundo. Quem desejar mais informações, só as encontrará em livros estrangeiros. Enheduanna não traz nada de novo. Era mulher, mas importante era o papel de mulheres nas civilizações da antiguidade, ao contrário do se possa pensar. Ser poeta cujas poesias chegaram ao nossos dias talvez seja o único traço a destacá-la. Mesmo assim, seus poemas eram cânticos sujeitos a cânones religiosos. Não havia a liberdade de criação que conhecemos no mundo ocidental moderno e contemporâneo.

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