Há alguns meses conversava com um amigo dono de hotel na Serra Capixaba, quando o celular dele tocou. Atendeu o telefone, um modelo antigo, flip, tela pequenina, e falou durante 2 ou 3 minutos. Quando desligou, comentei brincando: – Ôhh seu fulano! O senhor precisa arranjar um celular deste século.
Meu amigo hoteleiro é uma pessoa já de certa idade, culto e politizado. Apesar de estreita ligação com a terra – vem de várias gerações de fazendeiros – é bastante viajado. E ao meu comentário de zuação, respondeu, com um sorriso matreiro:
– Mas Guilherme, todos nós vivemos sob as referências e influência do século 20. Você não sabe? Do ponto de vista conceitual... de estrutura de vida, é ele que nos conduz. O 21 ainda nem completou a maioridade.
Seguimos na conversa, mas fiquei com aquela observação na cabeça, que mais adiante deu lugar a certas reflexões.
Pensei cá, com meus botões, e cheguei à conclusão que toda nossa concepção e entorno, presentes aos dias atuais, pertence, de fato, ao século 20, – como à frente tento explicar.
Aqui o leitor há de estar se perguntando o que entendo disso, para posar de filósofo e cuidar de assunto tão complexo.
Respondo: não entendo bulufas. Acontece que preciso preencher esta infeliz tela branca (como dizia João Ubaldo Ribeiro, “substituta infernal do papel em branco no cilindro da máquina de datilografia”) com alguma coisa... E como não ‘me veio’ assunto algum, estou lançando mão ‘disso aqui’, na pretensão de que vire uma crônica (???), preencha o espaço e ponto.
Então, “amigo” leitor, quebra essa e me ‘ajudaê’.
Voltando às minhas ilações, vamos lá. O século XXI começou em 2001. Assim – pergunta-se – o que temos de genuíno, formado e consolidado apenas nesses 18 anos? Nada.
Não há como conceber ou defender que alguém possa ter sua formação de pessoa, de entendimento, de personalidade e caráter, antes, digamos, de 10 anos decorridos de sua própria época.
Assim, como o mundo não lançou mão de varinha mágica para de príncipe virar abóbora, ou vice-versa, no piscar de olhos de 2000 para 2001, então é o século XX que vem prevalecendo no passado próximo e sob seu ordenamento estrutural é que vivemos.
Naturalmente que a tecnologia avançou, porque avança a cada dia. A Internet segue se modernizando, os carros esportivos estão mais esportivos e os telefones celulares evoluíram.
Mas a Internet, os superesportivos e os celulares são do século 20, e ainda não se viu transformações a tal ponto demasiadas como a carta escrita à mão e entregue por mensageiro, em relação ao correio eletrônico; ou do telefone fixo, de fio, comparado aos aparelhos atuais; ou, ainda, do motor do carro alimentado por carburador, relativamente à injeção eletrônica – para citar apenas três, entre centenas e centenas de exemplos.
De outra perspectiva similar cabe a indagação: nos primeiros anos 1900 – portanto, na vigência do século XX – o planeta vivia sob os auspícios da nova época ou do legado que recebera do século anterior? Evidente que deste. A ‘nova época’ ainda percorreria boa estrada para fazer emergir seus próprios traços.
O olhar genial de Woody Allen
O tempo e suas peculiaridades insondáveis não fugiram ao olhar genial de Woody Allen, que no instigante “Meia Noite em Paris “ abre uma interrogação sobre se é a vida que imita a arte, ou o contrário.
Tudo começa quando o americano Gil (vivido por Owen Wilson), um roteirista entediado e cujo sonho é se tornar escritor, viaja com sua noiva e os pais dela para Paris e logo vê a cidade como cenário inspirador para suas aspirações.
Desapontado, contudo, com a futilidade da noiva e dos sogros – ianques incapazes de sentir a atmosfera romântica e artística da ‘Cidade Luz’ – Gil, frustrado com tanta insensibilidade, resolve se desgarrar do grupo e voltar mais cedo para o hotel. Em sua incursão pelas ruas, senta-se nos degraus de uma escadaria quando avista um carro antigo. Os ocupantes, então, o convidam para uma festa e, numa espécie de túnel do tempo, Gil volta à Paris dos anos 20/30.
Em meio aos salões, bares e restaurantes daquela década, Gil se vê cercado por escritores, pintores, músicos e cineastas – artistas e intelectuais – que eram lendas, como Hemingway, Picasso, Cole Porter, Salvador Dalí, Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda e outros.
O que parecia um sonho, um delírio, virou rotina. Todas as noites o mesmo calhambeque parava e Gil embarcava, indo ao encontro de seus ídolos, que mercê dos repetidos bate-papos passariam a ‘melhores amigos’. De quebra, o aspirante a escritor ainda desfrutava da época que considerava a mais fascinante do mundo artístico.
Para acrescentar dose ainda mais inspiradora, Woody Allen ambientaliza a deslumbrante Adriana (Marion Cotillard), personagem fictícia, amante de Picasso, por quem Gil se apaixona. Mas a jovem, para sua surpresa, ‘sonhava’ ter vivido nos fins do século 19, na ‘Belle Époque’, para ela de mais brilho e frescor do que aqueles anos 30, do século XX.
Assim é o tempo: o personagem Gil, de 2011, sonhando e transbordando de felicidade com a década de 30, enquanto sua amada, Adriana, imaginava-se no século XIX.
Vale, reproduzir aqui as palavras de Diego Betioli, escritas em 2017. “... Meia-Noite em Paris traz um questionamento recorrente em nossa sociedade sobre a constante insatisfação com o tempo presente e a necessidade de buscar, no passado, a inspiração para a vida de um tempo do qual não temos domínio.”