* Arthur Soffiati
- Atualizado em 21/03/2019 19:02
Depois de ganhar livros do meu pai, eu mesmo comecei a montar minha biblioteca, em 1963, quando contava 16 anos de idade. Meu interesse pelo conhecimento gerou em mim ansiedade crônica (sofro dela até hoje) e uma biblioteca com minha marca. Os livros eram dispostos numa estante mínima de acordo com o interesse que me movia em épocas distintas. Formei, assim, uma biblioteca em camadas, em estratos, como a crosta terrestre.
Meu primeiro interesse foi a arqueologia. Matriculei-me num curso de noções básicas no Centro Brasileiro de Arqueologia. Eu morava em Padre Miguel e empreendia uma verdadeira viagem de trem ou de ônibus para o centro da cidade. Comecei também a ganhar autonomia. O CBA era uma instituição séria formada por arqueólogos amadores. Francisco Octavio da Silva Bezerra, Alfredo Coutinho de Medeiros Falcão e Affonso Celso Villela de Carvalho eram as pessoas mais presentes na entidade. O curso durava seis meses. Uma vez terminado, o estudante já estava apto a acompanhar os trabalhos de campo.
Juntei-me ao grupo e ajudei em prospecções arqueológicas em Guaratiba, na ilha do Governador e em alguns outros lugares entre 1964 e 1969. Minha última pesquisa ocorreu em São Fidélis a meu pedido. Ao longo do curso, fui conhecendo outras pessoas e montando a minha biblioteca. Cheguei mesmo a fazer palestras para os novatos. A primeira publicação que guardo desse tempo é a “Revista Brasileira de Arqueologia”, da qual só saiu o primeiro número, em 1964. Consultei livrarias antigas e a encontrei numa apenas, por R$ 250,00. Trata-se de uma raridade.
Havia recomendações e obrigações de leitura. Éramos obrigados a ler “Introdução à arqueologia”, de Gordon Childe (Lisboa: Europa-América, 1961), capítulos de “Introdução à arqueologia brasileira”, de Angyone Costa (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959); “Guia para prospecção arqueológica no Brasil”, de Clifford Evans e Betty Meggers (Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1965) e “La arqueologia en la URSS”, de Alexandr Mongait (Moscou: Ediciones en Lenguas Extrajeras, 1960). Nas conversas entre professores e alunos, outros títulos eram apresentados, ficando a critério de cada um comprá-los e lê-los.
Todos os filiados ao CBA não percebiam nuances teóricas nos autores lidos. Na década de 1970, cursando história na Fafic, também tínhamos — professores e alunos — a mesma perspectiva. Em arqueologia, não percebíamos com clareza que Gordon Childe era um marxista criativo que deu uma grande contribuição ao conhecimento com os conceitos de revoluções neolítica, urbana e industrial. Mongait era um stalinista que citava Marx, Engels e Lenin desnecessariamente. Betty Meggers e Angyone Costa, por sua vez, eram autores pragmáticos. No curso de história, líamos Caio Prado Jr, Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda como se eles fornecessem informações neutras ou dissessem a mesma coisa.
Por iniciativa própria, a primeira camada da minha biblioteca foi crescendo. Comprei e li “Para uma recuperação do passado”, de Childe (São Paulo: DIFEL, 1969), “Manual de arqueologia americana”, de Jose Alcina Franch (Madrid: Aguilar, 1965) e “Prehistoria de América”, de Salvador Canals Frau (Buenos Aires: Sudamericana, 1959). Eu tinha de fazer economias com minhas mesadas. Havia associados bem mais velhos que me presenteavam com livros. Uma discussão muito em voga na época girava em torno de inscrições fenícias no Pão de Açúcar. Havia pessoas atraídas pelo curso que esperavam o endosso dessa fantasia. Com meus três professores, notadamente Alfredo de Medeiros, esse delírio era logo demolido. Por causa da discussão, embora eu não fosse um dos delirantes, acabei comprando “Inscripções e tradições da America prehistorica”, de Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939). O autor atribuía essas inscrições a egípcios, fenícios, hebreus e gregos. O livro era considerado um monumento de charlatanice pelos nossos professores. Eu gostava dessa postura realista deles, pois ela apontava para a capacidade humana de criar culturas americanas de forma independente das europeias e asiáticas.
Nas prospecções efetuadas em Guaratiba, travei contato com Maria Beltrão, que me levou para trabalhar com ela no Museu Nacional. Não gostei do trabalho. Eu era um colaborador amador que passava o dia limpando pontas de flecha e outros instrumentos de pedra. Comecei a me desencantar com os arqueólogos. O interesse deles parecia cessar na descrição das peças encontradas, sem a preocupação de ir além e inferir sobre a cultura imaterial dos fabricantes dos artefatos. De Beltrão, guardo os livros escritos ou organizados por ela, como “Pré-história do Estado do Rio de Janeiro” (Rio de Janeiro: Forense Universitária/SEEC-RJ, 1978), “Arqueologia do Estado do Rio de Janeiro” (Niterói: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1995) e “Ensaio de arqueologia: uma abordagem transdisciplinar”(Rio de Janeiro: edição própria, 2000).Ganhei-os de presente. Dois deles com dedicatória da autora.
De limpador de artefatos, passei a guia de museu sob a orientação do sedutor professor Victor Stawiarski. Ele encantava os visitantes com seu jeito apaixonado de explicar. Sua peça favorita era a múmia de uma jovem enfaixada não como um bloco, mas com braços, pernas e dedos separadamente. Ela se foi no incêndio que destruiu o Museu. Conheci também os grandes paleontólogos Carlos de Paula Couto e Fausto Luiz de Souza Cunha, de quem tenho livros em outra camada da minha biblioteca.
Nas pesquisas em Guaratiba e na Ilha do Governador, conheci Ernesto de Mello Salles Cunha. Ele era dentista e espírita. Numa conversa conosco, ele revelou seu método para localização de sítios arqueológicos. Consistia em contatar espíritos de índios mortos. Meus professores não acreditavam nesse método, mas respeitavam Salles Cunha pelo seu trabalho. Foi ele que me presenteou “Sambaquis do litoral carioca” (Revista Brasileira de Geografia nº 1, ano XXVII. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1965). Encontrei Salles Cunha em Campos, como professor da Faculdade de Odontologia. O diretório acadêmico dela foi batizado com seu nome.
Minha ligação com o CBA foi se reduzindo aos poucos. Vim morar em Campos e passei a estudar justamente a dimensão descurada pelos arqueólogos: a cultura imaterial das sociedades. Mesmo assim, não abandonei de todo a arqueologia. Nas minhas pesquisas de mestrado e doutorado, recorri a arqueólogos. Consultei “Arqueologia Brasileira”, de André Prous (Brasília: EdUB, 1992); “Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro”, de Madu Gaspar (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000) e “Pré-história da terra brasilis”, organizado por Maria Cristina Tenório (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999).
Na camada referente a arqueologia, a primeira da minha biblioteca, tenho ainda “O sambaqui do Macedo – A.52.B – Paraná – Brasil”, de Wesley Hurt e Oldemar Blasi(Curitiba: Universidade do Paraná, 1960); “Arqueologia de campo”, de Mortimer Wheeler (México: Fondo de Cultura Economica, 1961); “Pré-história da Bahia”, de Carlos Ott(Salvador: Progresso, 1958), livro raríssimo; “El México antiguo”, de Paulo Gendrop (México: Trillas, 1972); “América pré-histórica”, Betty J. Meggers (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979). Assisti a uma palestra desta autora e levei dois livros seus para autógrafo. Ela redigiu dedicatórias. Menciono ainda“Pesquisa arqueológica no Amapá”, de Edinaldo Pinheiro Nunes Filho (Macapá, 2005), “Ilha Grande: do sambaqui ao turismo”, organizado pela campista Rosane Manhães Prado (Rio de Janeiro: Garamond/Eduerj, 2006); e “Convite à arqueologia”, de Philip Rahtz (Rio de Janeiro: Imago, 1989).
Em 2018, visitando a ilha de Marajó, comprei mais livros. No Museu Paraense Emílio Goeldi, adquiri “Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese”, organizado por Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt (Belém: IPHAN/Ministério da Cultura, 2016). O livro traz uma interessante discussão sobre o neolítico abaixo da linha do equador. Li também, em 2019, “Pesquisar arqueológicas no sítio do Caju”, de Ondemar Dias, meu professor no mestrado, e de Jandira Neto (Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2014). Ainda assim, não fiz as pazes com a arqueologia.
Muitas outras camadas superpuseram-se à de arqueologia. Hoje, minha biblioteca alcança 8 mil livros. Continuo comprando e lendo, mas nunca darei conta de tudo.