Depois dos cinquenta
*Arthur Soffiati - Atualizado em 07/03/2019 18:49
Não sei bem quando nasceu meu gosto pela literatura (melhor que leitura). Creio que foi quando meu pai me deu a coleção completa das obras de Júlio Verne. Eu contava, então, com 12 anos de idade. Li todos os livros da coleção até os 14 anos. Fiquei maravilhado com a fantástica imaginação do escritor. Mas, minto. Antes de Verne, eu vivia apegado ao “Guia do escoteiro”, de Velho Lobo, pseudônimo de quem não lembro mais. Até hoje, conservo o exemplar, que mandei encadernar. A primeira edição dele é rara e custa caro nos sebos.
Andei tentando ler um que outro livro da biblioteca do meu pai, que nunca me estimulou a ler nada. Lembro que fiz uma tentativa em vão de ler “O discurso do método”, de René Descartes. Nada entendi do que estava escrito ali, num livro tão pequeno. A partir dos 16 anos, idade de grandes transformações na minha vida, tomei gosto pelos livros. Eu queria ser naturalista, folclorista, historiador, romancista, contista, cronista, poeta, compositor e regente de orquestra. Era muita coisa ao mesmo tempo. Fui tomado de grande ansiedade e não sabia detectar a origem da minha confusão mental. Minha mãe queria me ajudar. Meu pai achava que eu devia ser um adolescente “normal”. Nem mesmo os médicos conseguiam diagnosticar o problema que me acometia, e me receitavam panaceias.
Mário de Andrade foi o culpado. Ele era quase tudo o que eu queria ser. Passei a gostar dos seus livros não porque ele me influenciava, mas por me identificar com seus múltiplos interesses intelectuais. Até hoje, é grande minha admiração pelo intelectual paulistano, que continua a nos presentear com escritos seus ainda inéditos, como se fosse uma fonte inesgotável. Recentemente, foi publicada a correspondência recíproca de Mário e Alceu Amoroso Lima, já na fila das minhas leituras. E Machado de Assis, sempre na fila de minhas leituras e releituras.
Um dos meus projetos, aos 16 anos, era ler os clássicos. Eu ficava muito impressionado com escritores jovens que já pareciam ter lido muito em línguas diversas. Um deles era Luís da Câmara Cascudo, que dominava seis idiomas, inclusive latim e grego. A geração de grandes leitores me marcou, embora eu não tenha conseguido ler uma fração mínima do que eles leram. Um dos motivos de eu me graduar em história foi acreditar que, por esse caminho, eu seria obrigado a ler os clássicos. Durante quatro anos, os professores cobraram apenas leituras de apostilas, capítulos de livros e manuais. Foi por minha conta que li Toynbee, Marc Bloch, Lucien Febvre, Braudel e outros historiadores.
No esforço para cursar mestrado e doutorado depois da idade, limitei-me também a ler o mínimo indispensável. Só comecei a me voltar para os clássicos depois dos 50 anos. Com esforço, li a “Ilíada” e a “Odisseia”, de Homero. Li também algumas tragédias e comédias gregas e latinas. Bem recentemente, li “Fragmentos completos” de Safo e poemas selecionados de outros poetas greco-latinos. Só recentemente, também, li “Sobre a arte poética”, de Aristóteles. No mais, páginas avulsas da antiguidade clássica. Tenho a sensação de que passei do tempo de ler autores muito distantes de nós.
Do renascimento, li “Cancioneiro” de Francisco Petrarca e “Utopia”, de Thomas Morus. Tanto os autores helênicos quanto alguns renascentistas me dão a sensação de familiares. Pulando para o mundo do extremo oriente, li o “Tao-Te-King”, de Lao Tse, numa edição erudita e luxuosa. Li também poemas selecionados de poetas japoneses e chineses pré-ocidentais. De civilizações intermediárias, gabo-me apenas de ter lido várias vezes a “Epopeia de Gilgámesh” (é assim mesmo que se escreve), com a qual me identifiquei bastante por seu caráter de documento monumental e artístico.
Mais perto do nosso tempo, li Shakespeare. Não todo. Morro de inveja daqueles que não esquecem seu teatro e sua poesia. Parece que eles estão me esnobando quando mencionam alguma passagem de “Hamlet”, de “Otelo”, de “A tempestade” ou de qualquer outra obra sua. Quando Luís Fernando Veríssimo relaciona alguma passagem de Shakespeare a um assunto cotidiano, confesso meu desejo de assassiná-lo. Sim, li os sonetos do grande autor inglês e amo alguns deles. Uma das minhas proezas foi ler “D. Quixote”, de Cervantes, no espanhol da época em que foi escrito. Fiquei muito feliz de entender uma língua que não o português em sua forma antiga. Não posso me esquecer do prolongado tempo que dediquei à leitura dos “Ensaios”, de Montaigne. Lembro também o “Novum Organum”, de Francis Bacon, e alguma coisa de Giordano Bruno.
Depois, vem aquele hiato mortal. “Pensamentos”, de Pascal, “Fausto”, “Werter” e alguns livros finos de Goethe, se é que ele tem alguma obra delgada. “Poemas” de Hölderlin. Algumas obras de Diderot, algo de Voltaire, contos de Edgar Allan Poe, com destaque para o “O corvo”, um dos mais belos poemas que conheço. Alguns poemas e “Aurelia”, de Gerard de Nerval. A poesia completa de Rimbaud; “Fragmentos de Narciso”, de Paul Valéry; “Um lance de dados”, de Mallarmé. Não posso me esquecer de Thomas Mann. Livros como “Tonio Kroger”, “A morte em Veneza”, “A montanha mágica”, “Carlota em Weimar”, “Doutor Fausto” são inesquecíveis. Até mesmo livros menores dele, livros escritos entre seus grandes romances, “As cabeças trocadas” e “O cisne negro” deixam em nós marcas indeléveis.
Dos ingleses, pouco li. “O casamento do céu e do inferno”, de William Blake; “Ode sobre a melancolia”, de John Keats; fiquei maravilhado ao ler “O coração das trevas”, de Joseph Conrad. Li dele alguma coisa mais. Como não descobri esse autor antes? Lacuna imperdoável na minha formação.
Da literatura dos Estados Unidos, li “Moby Dick” e “Bartleby, o escrivão”, de Herman Melville. “O Grande Gatsby”, de Fitzgerald;“Lolita”, de Nabokov.Esse autor russo se tornou norte-americano.Ele era também entomólogo. Tenho seus escritos de entomologia, esperando lê-los num tempo que nunca virá. A edição integral de “Folhas de relva”, de Walt Whitman, livro que me exigiu disciplina;“Enquanto Agonizo”, de William Faulkner. “O Apanhador no campo de centeio”, de Salinger, li só depois dos 50 anos e me amaldiçoei por não ter lido antes.
Dos grandes escritores russos do século XIX, nunca li uma obra de fôlego. Apenas “As três irmãs” e “A estepe”, de Tchecov; “Notas do subterrâneo” e “Um pequeno herói”, de Dostoievski; “A briga dos dois Ivans”, de Gogol; e “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói. Li alguma coisa mais dos russos.Nada de fundamental, porém.
Dos italianos recentes, li “Se um viajante numa noite de inverno” e “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino, assim como “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati, por sugestão de uma vendedora de livro em São Paulo. Trata-se também de um dos meus livros prediletos. Um dos autores italianos que mais amo é Alessandro Baricco, de quem já li três livros, todos eles excelentes. Li todos os romances de Umberto Eco e mais alguns livros dele. Trata-se de um autor que me mata de inveja pela sólida cultura geral. Sempre me pergunto como ele conseguiu ler tanto em tão pouco tempo.
De Darwin, tenho “A origem das espécies”. De Marx, tenho “O capital” completo. De Freud, tenho as obras completas. Mas, dos três, li escritos não fundamentais. Pouco sei dos cientistas e pensadores mais recentes.
Quando me aposentei, resolvi pagar a dívida que devia a mim mesmo, mas protelei. Primeiro, resolvi me atualizar, lendo a produção científica e literária recente para depois retornar aos clássicos. Errei. Se começasse primeiro com os clássicos para chegar à produção recente, também erraria e nunca me sentiria contente. Sei que não se pode ler tudo o que se deseja, mas li muito pouco frente ao que eu desejaria ler.
Quem pretende acompanhar a produção recente se mete numa camisa de onze varas (ditado antigo), pois não cessa a publicação de livros. Leio o que posso e concluo que não valeu a pena ler tudo. Pouca coisa se salva. Mas a leitura é fundamental para alcançar essa conclusão.
Além do mais, reservei minha aposentadoria para pesquisar e escrever. Em resumo: retorno à confusão dos meus 16 anos.

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