Mais de 20 mil judeus fugiram da Europa e conseguiram entrar no Brasil com passaportes falsos e outros 15 mil, interceptados em portos brasileiros pela polícia política de Getúlio Vargas, tiveram de retornar a seus países, porque o governo considerava ilegais seus vistos de entrada. Os documentos eram emitidos por consulados que, principalmente na Alemanha, França e Holanda, ignoravam a proibição das Circulares Secretas enviadas pelo Itamaraty a seus subordinados no exterior, proibindo a concessão de vistos.
Os imigrantes judeus se instalavam em São Paulo com a ajuda da Congregação Israelita Paulista (CIP), fundada em 1936, um ano antes da criação do Estado Novo, em 1937, quando Getúlio Vargas alinhava seu governo com o nazismo de Adolph Hitler e o fascismo de Benito Mussolini. A polícia da ditadura extraditou centenas de judeus, entre os quais Olga Benário, mulher de Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, para agradar aos nazistas. Na Alemanha, Olga foi assassinada num campo de concentração.
A história da CIP e de centenas de vítimas e sobreviventes do Holocausto é o tema do livro “Olhares de Liberdade. CIP — Espaço de Resistência e Memória” (CIP, 280 págs., R$ 50), da historiadora Maria Luíza Tucci Carneiro, professora da Universidade de São Paulo (USP).
Além das informações levantadas pela pesquisadora, o livro tem textos dos atuais rabinos da CIP — Fernanda Tomchinsky-Galanternik, Michel Schlesinger e Ruben Sternschein. “Desde sua fundação em 1936, a Congregação Israelita Paulista teve, como seu maior propósito, a defesa da liberdade. Essa defesa passava, primordialmente, pela libertação dos refugiados judeus que chegavam ao Brasil fugindo dos horrores perpetrados pelos nazistas e pela Segunda Guerra Mundial”, escreve o presidente da CIP, Marcos Lederman, em mensagem na abertura do livro.
Maria Luíza vem estudando a história dos refugiados judeus desde 1984, quando começou a preparar sua tese de mestrado. Em 1991, defendeu a tese de doutorado na USP — O Antissemitismo na Era Vargas — à qual se seguiram a tese de livre-docência “O Brasil Diante do Holocausto e dos Refugiados do Nazifascismo 1933-1948” e pelo menos outros cinco livros.
A pesquisadora gravou 364 testemunhos de sobreviventes da tragédia que assassinou cerca de 6 milhões. A história é contada por judeus que conseguiram escapar da morte ou por seus descendentes. O material coletado está guardado nos arquivos da CIP. Essa entidade foi criada com a finalidade de preservar a memória. “As novas gerações não se interessam pelos relatos de seus antepassados sobre uma tragédia que não pode ser esquecida”, lamenta a historiadora.
“Olhares de Liberdade”, que enaltece a CIP como espaço de resistência e memória, lembra a contribuição dos judeus para a sociedade brasileira. Por exemplo, o arquiteto Jorge Wilheim, o pintor Lasar Segall e o industrial Siefried Adler, fundador da Manufatura de Brinquedos Estrela Ltda.
Outros nomes, embora sejam brasileiros natos e não refugiados, como o empresário José Mindlin, são citados pelo apoio que deram à CIP. Wilheim, que era italiano de Trieste e descendente de judeus húngaros, emigrou para o Brasil com uma certidão de batismo falsa, concedida pela Igreja Católica, e voltou a praticar o judaísmo, assim como fizeram outros judeus em igual situação.
O rabino Henry Sobel, da CIP, merece destaque no livro por sua atuação no episódio do assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Ele não aceitou a versão de suicídio e autorizou que Herzog fosse sepultado no Cemitério Israelita do Butantan conforme os ritos judaicos, em vez de ser isolado na ala destinada aos suicidas.
Sobel participou, ao lado do cardeal-arcebispo d. Paulo Evaristo Arns e do reverendo presbiteriano Jaime Wrigth, do ato inter-religioso na Catedral da Praça da Sé, em memória do jornalista. A celebração reuniu cerca de oito mil pessoas e foi considerada uma manifestação importante para a derrubada da ditadura.
Maria Luíza inclui na história dos refugiados os diplomatas brasileiros que, apesar das Circulares Secretas do Itamaraty, concederam vistos para centenas de judeus entrarem no Brasil. A maioria dos vistos foi liberada pelo embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, que foi forçado a transferir-se de Paris para Vichy, em 1940, após a ocupação da França.
Cem mil judeus estavam reunidos nas cidades de Nice, Marselha e Lyon. O embaixador concentrou a concessão de vistos em Marselha, onde estavam o cônsul Maurilio Martins de Souza e o vice-cônsul Roberto de Castro Brandão que, em dois anos, emitiram vistos, salvando centenas de judeus e perseguidos políticos. Entre eles o diretor de teatro polonês Ziembinski, que não era judeu.
No Consulado-Geral de Hamburgo, na Alemanha, a secretária Aracy Moebius de Carvalho deu vistos para centenas de judeus que pretendiam fugir para o Brasil. O escritor João Guimarães Rosa, que era o cônsul adjunto, não assinou os vistos, mas certamente tinha conhecimento da ação de Aracy, com quem veio a se casar.
Aracy foi homenageada no Museu do Holocausto, em Jerusalém, ao ser incluída na galeria dos Justos entre as Nações. (A.N.)