Folha Letras - COR
14/02/2019 19:42 - Atualizado em 15/02/2019 19:18
Existia um mundo em que as pessoas gostavam muito de cores. Durante muito tempo o fato de elas gostarem de cores diferentes acabou sendo tolerado. Todos sabiam que as pessoas gostavam de cores que poderiam ser diferentes das suas, mas como isso não era assim tão importante, pois era um direito de cada um e como todos preservavam de alguma forma sua intimidade, não ocorriam muitos problemas.
Um dia alguém inventou uma caixa mágica. Ela era, realmente, fascinante. Toda vez que o usuário abria a tampa saía da caixa uma luz forte, e ele poderia se comunicar com qualquer pessoa. Ele lia piadinhas, via imagens dos outros usuários e, sobretudo, ficava sabendo de suas opiniões, principalmente sobre cores. Todos estavam maravilhados, e viram naquela invenção a possibilidade de saírem de seus anonimatos para, finalmente, tornarem-se alguém, seja lá o que isso significasse.
Com o passar do tempo, as pessoas perceberam que recebiam mais apoio e felicitações quando exaltavam suas cores prediletas. Quem gostava de amarelo recebia mais elogios de quem também gostava de amarelo. O mesmo aconteceu com quem gostava de azul, verde, vermelho, rosa, violeta. Então passou a ser normal valorizar a cor de sua preferência e, logo em seguida, humilhar e desmerecer quem gostasse de outras cores para receber elogios ainda mais entusiasmados, enquanto os que gostavam de cores diferentes começavam, claro, a se afastar.
Todos se tornaram especialistas em cores. Manifestavam opiniões sobre todas as cores, ainda que desconhecessem completamente os fatos sobre elas e inventassem fatos positivos sobre suas cores prediletas. Criaram até um nome novo para o termo “mentira”, a fim de que ninguém parecesse o que realmente era. Desprezavam ou insultavam aqueles que haviam estudado sobre cores e que tentavam esclarecer a realidade sobre elas. Qualquer um que procurasse apurar fatos, com isenção, sobre cores era visto como um inimigo. Defender a sua cor tornou-se, rapidamente, não mais um ponto de vista ou uma simples opinião. Transformou-se numa questão de fé. Mas a fé, sem o tempero da fraternidade e do bom senso, é só mais um argumento para o preconceito. Obviamente todos começaram a odiar quem não gostasse de sua cor predileta ou, simplesmente, não considerasse sua cor a mais bela. Esse sentimento começou a destruir as relações das pessoas e, com o passar do tempo, a única solução óbvia era impor sua cor sobre os demais. Assim iniciou-se uma guerra. Ao fim da mesma venceram os que gostavam da cor azul. Aqui deixo claro que tenho versões deste conto com a vitória de várias cores. Escolhi azul porque eu prefiro azul.
“Pronto”, pensaram os defensores da cor azul. “Não temos mais problemas. Todos, agora, gostam da mesma cor.” Abriram suas caixas mágicas e começaram a falar do quão belo era o azul, em especial o azul claro. Mas logo apareceram mensagens em que outros escreviam gostar mais de azul royal, azul marinho, azul escuro ou azul turquesa. Com o tempo, as pessoas começaram a odiar todos que não gostassem do mesmo tom de azul que elas. A única solução, portanto, era impor seu tom de azul sobre os demais. No fim da nova guerra venceram os que gostavam de azul claro. O problema é que, ao abrirem as caixas novamente, alguém falou que gostava do azul claro do mar...
Foram muitas guerras. Mas tudo, um dia, acaba. Sobrou um único habitante naquele mundo. Ele gostava de azul claro do mar na praia de Alembere, na parte da manhã, em um dia de Sol com poucas nuvens, quando o mar estava com leves ondulações, oriundas de um vento com três nós de velocidade, sempre no dia vinte e três de setembro, quando o Sol estivesse na angulação que acontece às nove horas, dezessete minutos, quarenta e três segundos e dezessete centésimos de segundo, e visto de um ponto da praia que ficava a exatamente a trinta e três metros, na direção nor-nordeste de uma pedra grande existente no local.
Esse sobrevivente subiu na mais alta montanha daquele mundo, manchado de sangue mas cheio de um inebriante orgulho e uma indisfarçável soberba, e gritou: “Viram? Eu estava certo!” Abriu a caixa uma última vez e esperou os aplausos. Eles nunca vieram...
Moral da história: não tenho pretensões de ensinar nada a ninguém. Estou sempre tentando aprender. Mas acho melhor respeitar quem pensa diferente e conversar sem ódio ou rancor. Até porque quero aprender. Alguns gostarão deste texto. Outros, não. Importa, isto sim, respeitar o belo Universo que existe dentro de cada ser humano. Entendo que qualquer vida tem valor e precisa ser tratada com respeito. Todos queremos felicidade. Temos mais coisas em comum do que as que nos diferenciam. Mas se nos apegamos somente às nossas diferenças, esquecemo-nos da nossa Humanidade, que, afinal, é o que deve nos unir. Quando isso acontece, as coisas podem ficar muito feias. “Cor”, em latim, significa “coração”. Que nossos corações estejam cheios da paz que constrói pontes entre nossas cores.
*Carlos Augusto Souto de Alencar é só um ser humano que, em sua inocência um tanto patética, acha que viver em paz e respeitando o outro é a melhor receita de convivência fraternal.
Obras que servem de referência ao texto: “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, “1984”, de George Orwell, e a arte gráfica de Andy Warhol.
(*) – Acadêmico. Presidente da Academia Pedralva de Letras e Artes.

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