Para “O Globo” e “Folha de São Paulo”, houve concordância quanto a “A biblioteca elementar”, de Alberto Mussa (Rio de Janeiro/São Paulo: Record) como um dos melhores romances de 2018. Com ele, Mussa cumpre sua promessa de escrever um romance para cada século do Brasil europeu. O conjunto merece uma página especial a ser escrita em breve. A forma de narrar do autor é bastante particular. Ele escreve como se estivesse conversando com o leitor. Assim, expõe suas dúvidas, refere-se a outros escritos seus, mostra mapas que facilitam o leitor em se situar no contexto da trama.
“A biblioteca elementar” está ambientada no Rio de Janeiro do século XVIII, mais centrado na rua do Egito, antes conhecida como rua do Piolho e hoje nomeada como rua da Carioca. A maioria dos moradores daquela rua, no século XVIII, era de origem cigana. Daí seu nome de Egito, pois os ciganos diziam vir desse país. Como sempre, há um crime em torno do qual se constrói o romance, geralmente um assassinato.
Por mais que Mussa revele de início quem matou e quem morreu, o crime é resultado de uma complexa reunião de fatores. No fim, muitas foram as mentes envolvidas no assassinato, ainda que involuntariamente. O autor discorre sobre suas pesquisas, sobre os autores a que recorreu para reconstruir a cidade no tempo em que o romance se passa. Ao ambientar o fulcro da história, o autor amplia os horizontes e reconstrói a vida de uma cidade colonial fundada abaixo da linha do Equador.
Quanto aos crimes que motivam os cinco romances históricos e antropológicos, Mussa explica: “A verdade, num romance policial, nunca deve estar nas personagens – mas nas circunstâncias. Um romance policial não pode admitir a ideia tola de justiça; e muito menos ceder à banalidade da noção de prova. Num verdadeiro romance policial, tudo é perspectiva; tudo é incompletude.”
O centro da trama é uma biblioteca de uma casa na rua do Egito. O quadro geográfico se amplia de modo a alcançar o exterior do país e o vale do rio Itabapoana, com seus índios. No final, as motivações do crime estão de tal forma distribuídas que a culpa se dilui, como em todo romance policial do autor. Um paradoxo inspirado no problema de Epimênides de Creta (séc. 6° a. C.), colocado como epígrafe, parece traduzir a complexa trama do crime narrado por Alberto Mussa: “A frase seguinte é falsa; mas a anterior é verdadeira”. Saia-se dessa.
Só a “Folha de São Paulo” elegeu “A tirania do amor” (São Paulo: Todavia), de Cristóvão Tezza, como um dos melhores romances de 2018. Não foram lançados grandes romances no ano que passou. Se foram, não tive notícias dele. Tezza é um dos maiores escritores da atualidade. Ele deixou uma estável carreira de professor universitário público para se dedicar à literatura. Já escreveu revelando que seu forte não é o conto, mas “Beatriz” (2011) é um excelente livro do gênero.
Numa travessia de rua, o economista Otávio Espinhosa passa em revista sua vida, seu casamento, seu filho, sua filha, sua decisão de abdicar da sua vida sexual, o amante da mulher, seu interesse por uma colega de trabalho, seu emprego massacrante, seu passado e seu presente. Tudo de forma quase sincrônica. Na vida real, os assuntos não se apresentam de forma diacrônica, ou seja, um de cada vez, como é comum se proceder numa narrativa. O simultaneísmo é o traço da ficção de Tezza. Ele se tornou conhecido com “O filho eterno” (2007), livro em que narra na terceira pessoa a experiência de um pai cujo filho tem síndrome de Down. Contudo, é a partir de “Um erro emocional” (2010) que sua prosa se torna complexa. Vieram nessa linha “O professor” (2014), “A tradutora” (2017) e agora “A tirania do amor”, de fato, merecedor de elogios. E Tezza é também cronista e ensaísta. Arriscou-se na poesia com um pequeno livro, mas esta parece não ser sua praia.
“O romance luminoso”, de Mario Levrero, foi escolhido por “O Globo”, mas não pude lê-lo ainda. Registro também o romance “Dora sem véu”, de Ronaldo Correia de Brito (Rio de Janeiro: Alfaguara). O tema predileto do autor é a polaridade entre sertão e cidade que marca o nordeste atual. O sertão está se decompondo e se integrando (mal) ao que chamamos de globalização. Não foi dos melhores romances de Brito. Marcelo Rubens Paiva também lançou “O orangotango marxista” (Rio de Janeiro: Alfaguara), uma sátira à vida humana e a sociedade neste início de século. É nítida no romance a influência de “O planeta dos macacos”, de Pierre Boule.Jacques Fux publicou “Nobel” (Rio de Janeiro: José Olympio), um sarcástico discurso sobre o prêmio mundial. De certa maneira, ele antecipa o filme “A esposa”.
Tanto “O Globo” quanto a “Folha” elegeram “Caderno de memórias colônias” (São Paulo: Todavia), de Isabela Figueiredo. Trata-se de um notável livro de memórias da filha de um casal português que nasceu em Moçambique. Ela dedica o livro a seu pai, com quem tem uma relação de amor e ódio. Ele, seu pai, encarna o machismo e o colonialismo. Ele não apenas representa o dominador de um povo como também coloniza o corpo das mulheres africanas. As culturas moldam os corpos e os costumes.
E o pai de Isabela gostava de sexo. Os negros serviam para ser dominados e para cumprir ordens. As negras serviam para o prazer do sexo que sua mãe não lhe dava. Foi em Moçambique que Isabela iniciou-se no sexo com uma amiga. E ela se pergunta: “Há uma relação entre o território geográfico e o corpo humano?” E responde: “Amei o corpo de carne repetida do meu pai, que confundo com a terra.” Finalizando, ela declara: “Não amei o colonialismo, mas não posso evitar ter conhecido a sua mancha”. Estamos diante de uma escritora dividida e corajosa.
Quanto à autobiografia “O fim de Eddy”, de Édourd Louis, também não tive ainda a oportunidade de ler. Quanto à literatura estrangeira, registro o marcante relato de Mohsin Hamid, que aparece novamente no Brasil com “Passagem para o ocidente (São Paulo: Companhia das Letras). Já conhecíamos dele o inclassificável, à primeira vista, “Como ficar podre de rico na Ásia emergente” (São Paulo: Companhia das Letras, 2014). Agora, o escritor paquistanês ambienta seu romance nas ondas migratórias que ocorrem no mundo. Quem quiser conhecer a globalização pelos olhos das vítimas deveria ler Hamid.
Cabem registros ainda sobre “A uruguaia”, do escritor argentino Pedro Mairal (São Paulo: Todavia), “Luto” (São Paulo: Mundaréu), do guatemalteco Eduardo Halfon, e “Baratas” (São Paulo: Editora Nós), da ruandesa Scholastique Mukasonga. Mairal trata de temas bastante atuais, como os limites da infidelidade conjugal, o homossexualismo e a globalização financeira. Halfon é quase memorialista, indo a alguns níveis do passado e voltando ao presente; visitando a Europa nazista, de onde veio sua família, mergulhando na cultura católica miscigenada da Guatemala e passando pelos Estados Unidos. Mukasonga é autobiográfica, descortinando o violento processo de descolonização africana e a guerra interna entre tutsis e hutus em Ruanda.