Orgulho negro aquece mercado
Joseli Matias 15/01/2019 20:34 - Atualizado em 18/01/2019 16:01
Ser negro e ter orgulho da cor da pele, do cabelo crespo e das origens. O sentimento de empoderamento que hoje se exala nas ruas — das estampas de camisa aos cachos assumidos —, além da luta pela igualdade de direitos, influenciou novos nichos de mercado e vem ajudando a mover a economia. Há poucos anos um cenário impensável, produtos para cabelos crespos e cacheados, maquiagem para pele negra e acessórios hoje lotam prateleiras de lojas e farmácias. Estabelecimentos especializados em serviços para a mulher e o homem negros também se multiplicaram e sustentam a agenda cheia praticamente durante todo o ano.
O crescimento desse segmento é associado ao maior acesso da população negra à educação, a fazendo adquirir poder econômico e chamando a atenção da indústria, que viu o potencial de mercado. “A tendência do mercado é cada vez mais se segmentar. É o mercado das ‘tribos’ o que mais cresce hoje. E com o movimento negro não foi diferente. Com o estudo e a inserção no mercado de trabalho, a população negra, apesar de ainda segregada, ganhou poder de compra, fazendo com que pudesse resgatar sua cultura, que por muito tempo ficou ‘esquecida’, exatamente pela falta de poder aquisitivo. Hoje, esse público é um filão no mercado”, ressaltou o mestre em economia empresarial Paulo César Marques.
Em Campos não é diferente. O mercado aquecido para esse setor atraiu uma grande rede especializada, e não faltam clientes. Cofundadora e presidente da franquia, Leila Velez conta que a loja se instalou na cidade em 2013, devido à demanda percebida a partir do sucesso de uma caravana de campistas que ia ao Rio de Janeiro em busca dos serviços prestados nos salões da capital. A executiva afirma que, por mês, passam pelos institutos da rede mais de 130 mil clientes, em busca dos produtos e dos mais de 20 tipos de serviços desenvolvidos para esse tipo de fio de cabelo.
A empresa atua há 25 anos e hoje tem 22 institutos e 17 quiosques de produtos nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. E recentemente a companhia ultrapassou as fronteiras brasileiras e inaugurou uma unidade nos Estados Unidos, em Nova Iorque, no emblemático bairro do Harlem.
— Somos uma empresa única, com a proposta de valorizar os cabelos crespos, ondulados e cacheados das mulheres, homens e crianças. Somos um país miscigenado e 70% da nossa população tem cabelos crespos em algum nível. Nada mais justo do que termos um salão que ofereça tratamentos e produtos direcionados e especializados nesse tipo de fio — ressalta Leila. De acordo com ela, a unidade em Campos tem dado bons frutos.
A identificação do potencial desse mercado aconteceu de forma natural, segundo Leila. “Quando minha sócia, Zica Assis, andava pela comunidade com seus cabelos, as mulheres queriam saber o que ela estava usando, pois também queriam. Percebemos essa demanda, em um mercado que não era sequer enxergado pelas grandes empresas há 25 anos. Então apostamos em um pequeno salão e o sucesso foi quase que imediato”.
Mas nem sempre o estilo foi bem recebido. Leila conta que Zica, ex-babá e faxineira, sofria sérios preconceitos por conta do cabelo black power e, apesar de gostar dos seus fios armados e crespos, ela foi obrigada a alisá-los para conseguir emprego. “Ela, entretanto, não se conformou, resolveu estudar para ser cabeleireira e passou 10 anos pesquisando uma fórmula para tratar seus cabelos com a sua originalidade”.
Campista, Monalizza Oliveira Teixeira, 24 anos, a Mona, aposta na beleza natural da mulher negra. Ela trabalha trançando cabelos e há épocas em que é difícil conseguir uma vaga na agenda da trancista. Mona conta que o que hoje é sua principal fonte de renda começou por uma transformação pessoal.
— A infância e juventude de uma menina negra tem muitos desafios para a construção de sua autoestima, principalmente por conta do cabelo, se for cacheado ou crespo. Então, assim como a maioria das minhas clientes, eu busquei aprender a cuidar do meu cabelo, mas mantendo-o cacheado/crespo, como ele é, passando pela transição capilar. Para muitas mulheres, as tranças são uma forma de passar por esse processo e um resgate de sua identidade enquanto mulheres negras ou que se identificam com a cultura. Procuro prestar o serviço que busquei para mim mesma, no que se trata de atender à expectativa das clientes e de fazer no menor tempo possível — destaca.
Mona trança cabelos profissionalmente há dois anos, incentivada pelo coletivo negro Mercedez Batista, ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF) em Campos. “Tenho muita gratidão por quem me motivou a trançar cabelos, especialmente a integrantes do coletivo Mercedez Batista, onde vi as primeiras mulheres negras com tranças, que me inspiraram a usar e também foram minhas primeiras clientes”, conta Mona, que divulga seus trabalhos na página “Trança de cor em Campos dos Goytacazes-RJ”, na rede social Facebook.
Negra de cachos assumidos, Andrea Machado conta que há alguns anos tinha dificuldades para encontrar profissionais especializados no tratamento de fios cacheados e crespos em Campos. “Alguns anos atrás, não existiam profissionais qualificados para cuidar do cabelo afro, pois as técnicas usadas eram com produtos que acabavam alisando o cabelo e até quebrando. Tínhamos que nos deslocar uma vez por mês em uma viagem tipo caravana, que durava o dia inteiro. Saíam sempre dois ônibus de Campos com destino a salões em Copacabana, no Rio de Janeiro. Hoje já existem em Campos vários profissionais competentes e qualificados para cuidar do cabelo afro”, destacou Andrea.
Reflexo do empoderamento econômico
A socióloga Simone Pedro, diretora de Pesquisas da superintendência municipal de Igualdade Racial, reforça que o empoderamento estético é resultado do empoderamento econômico. Segundo ela, esse fenômeno de consumo e de comportamento está diretamente associado às políticas sociais implementadas por pelo menos 15 anos no país.
— O IBGE 2010 indica que, no Brasil, as mulheres negras compõem, em sua maioria, o quadro de pessoas que pertencem às classes mais pobres. Ingressas no mercado de trabalho, nos programas educacionais e de transferências de renda, elas foram introduzidas no mercado consumidor e a indústria nacional, vislumbrando esse potencial, inicia sua busca em compreender as necessidades estéticas dessas mulheres para melhor atendê-las. É importante ressaltar que essas questões mercadológicas têm seus desdobramentos em outros âmbitos — afirma Simone.
De acordo com ela, entretanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido. “As características e os traços negróides se legitimaram na mídia como ‘beleza’, ganhando destaque nas capas das revistas e nos anúncios publicitários. Contudo, esses destaques não são indicativos de uma aceitabilidade da imagem do negro na mídia. Fora do tema ‘black beauty’, a representação do negro ainda se forma bastante desproporcional à realidade”.

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