Primeiro, nasceram os invertebrados. Depois, vieram os vertebrados. Invertebrado é um conceito decorrente de vertebrado. Aplica-se aos animais que não têm esqueleto interno. Seu corpo é, geralmente, revestido por uma carapaça denominada exoesqueleto por oposição ao endoesqueleto dos vertebrados. Não são bons conceitos, mas não temos como propor algo melhor.
Entre os invertebrados, estão os artrópodes, animais com patas articuladas. O significado literal e original de artrópode é pé (podos) articulado (artro). Também não é um bom conceito, mas ainda não encontramos um melhor. Exemplo de artrópodes: insetos (três pares de patas), aranhas (quatro pares de patas), caranguejos (cinco pares de patas), quilópodes (um par de patas em cada segmento do corpo) e diplópodes (dois pares de patas em cada segmento do corpo). E chega de biologia. Passemos à literatura e à pintura.
Noto que os artrópodes figuram com mais intensidade na literatura e na pintura do mundo ocidental e nas civilizações em geral do que, talvez, outros animais. Aos poucos, eles foram sendo banidos do nosso convívio ou combatidos pelos perigos que representam. Num mundo ocidentalizado e artificializado, os artrópodes costumam ser esmagados. Mosquitos, moscas, formigas, baratas, escorpiões etc. não são bem-vindos. Eles que se contentem com o interesse dos biólogos especialistas. Alguns literatos se voltaram para eles, como é o caso de Carlos Drummond de Andrade, que gostava mesmo da companhia de baratas e as considerava bonitas. Foi a leitura de “Nuvens de algodão” (Belo Horizonte, Âyiné, 2018), de Abbas Kiarostami, cineasta, fotógrafo e poeta iraniano, que me despertou a atenção para os artrópodes na literatura e na pintura. Tenho esse interesse desde meus seis anos de idade.
Na poesia chinesa e japonesa, os artrópodes mereciam atenção e enriqueciam poemas. Selecionei alguns, já que não posso abusar do espaço do jornal. Du Fu, um dos maiores poetas da dinastia Tang (618-907 d.C.) ao lado de Li Bai e Wang Wei, deleita-se num pequeno poema: “Na casa de Huang Si há flores no caminho/dezenas de milhares pesam pelos ramos/As borboletas rodam lentamente dançam/tranquilos pássaros entre chilros e trinos”. Paz e contemplação é o que nos mostra a poesia oriental antes da chegada do ocidente no século XV d. C.
Bai Juyi (772-846) também sente os insetos: “geada à grama escura e um ciciar de insetos/ao sul da vila e a norte nem um viajante/sozinho olhar da porta os devolutos campos/brancura a lua à flor do trigo tudo é neve”. Sente-se a falta de pontuação para dar mais sentido ao poema. Mas, na China e no Japão, a escrita é para ser vista mais que lida, diferentemente do ocidente. Pinta-se a escrita em vez de escrevê-la.Em Li Shangyin (813-858), colhi este poema: “Ver-se é difícil; separar, tão mais difícil, /vem vento leste fraco, cem flores definham. /Segue bicho-da-seda à morte. O fio cessa”. Bicho da seda é inseto, mas pouca gente sabe.
Recentemente, tive o prazer de encontrar um manuscrito escaneado do artista japonês Kitagawa Utamaro, nascido em torno de 1753 e morto em 1806. Ele não chegou a conhecer a dominação ocidental opressora, mas conhecia o ocidente. De longe. Pouco se sabe sobre sua vida. Suas obras começaram a ganhar destaque na década de 1770. Ficou famoso por seus retratos de mulheres bonitas com seus traços alongados. Além de mulheres, ele se apaixonou pelas pequenas criaturas, artrópodes entre elas. Daí seu “Livro dos insetos”, não só com esses invertebrados de seis pernas sobre belas plantas, mas também com outros artrópodes. Uso algumas dessas pinturas para ilustrar este artigo. Suas figuras alongadas de mulheres influenciaram os pintores impressionistas europeus.
Mas o que me motivou a escrever este artigo foram os haikus de Abbas Kiarostami que, na verdade, não são verdadeiros haikus. Ele já era bastante ocidentalizado, mas não importa. Em qualquer civilização, podemos encontrar quem se encante com bichinhos que a maioria odeia e quer eliminar.
Assinalei os seguintes: “Na claridade do dia/ninguém distingue/o vagalume”. De fato, a beleza do inseto se mostra na escuridão da noite, sem que ele minimamente queira mostrar sua formosura a nós. “A mosca/foi morta/culpada de haver provado o açúcar.” É outro pequeno poema. De moscas, não gostamos nem de cupins, que aparecem nesses versos: “No silêncio da noite/não me deixa dormir/a nênia dos cupins.” Aqui, os insetos incomodam o poeta. De abelha, nós gostamos apenas do mel. Nem sequer levamos em conta seu papel de polinizadoras e garantidoras da reprodução da vida. Darwin escreveu que a vida desapareceria sem o trabalho das abelhas.
Para Kiarostami, “A abelha/permanece indecisa/entre milhares de flores de cereja.” No Brasil, há uma infinidade de abelhas nativas que nunca mereceram um poema, que eu saiba. “A aranha/deixa os seus afazeres/por um instante/ante o espetáculo do alvorecer.” Com relação às aranhas, que é um aracnídeo, temos uma relação de repúdio e admiração. Elas mereceram muitas lendas e poemas.
Novamente, a abelha: “As abelhas operárias/interrompem o trabalho/para um doce prosear/em torno da abelha-rainha.” Ou “O sol de outono/reverbera atrás da vidraça/sobre as flores do tapete:/ uma abelha debate-se na vidraça.” E a aranha retorna: “A aranha/contempla orgulhosa o resultado do seu trabalho/entre o pé de amora e a cerejeira.” As formigas, tão detestadas por nós, apesar da fábula, também merecem a atenção do cineasta iraniano: “O terremoto/destruiu até mesmo/o celeiro das formigas.”
Abelha e aranha encerram o livro em que Kiarostami reúne suas experiências com a forma japonesa de fazer poema. Claro que ele não expressa o que sentem os artrópodes. Ninguém poderia alcançar o âmago de cada planta e animal, pois cada um tem seu mundo próprio. O que ele faz é expressar seu sentimento diante dos pequenos animais. “Ainda que eu me esforce/não compreendo/o porquê de tanto/zelo e pompa/no trabalho da aranha.” Essa admiração é típica dos artistas. A pergunta não tem resposta. “A abelha/inebria-se/com o perfume de uma flor desconhecida.”, imagina o poeta.
Deixo, assim, registrado mais um manifesto da minha admiração por esses animaizinhos que povoaram a minha infância e que a cidade está expulsando.