(Cadáver) — Minha hipótese para o interesse pelos filmes de terror num tempo que dessacraliza o mundo dia a dia é que a laicização leva as pessoas a buscar o sobrenatural nem que lhe cause medo. Sei muito bem que o sagrado não foi abandonado de todo, mas ele não provoca mais guerras, não controla a medicina nem condena bruxas à fogueira. Deve-se reconhecer que o sagrado violento se manifesta ainda hoje no islamismo e no cristianismo em sua versão evangélica atrasada. No mais, a crença de que só existe uma fé verdadeira e a intolerância religiosa se aquietaram num politeísmo tácito. As religiões monoteístas aceitam as outras em nome da tolerância. Vive-se o politeísmo sem perceber.
Entendo por que a literatura e o cinema prosperam com distopias. Os avanços da ciência não só geraram entusiasmo como também desconfiança. Daí, as distopias que se enraízam em “Frankenstein”, de Mary Shelley, no início do século XIX, passando por “O médico e o monstro”, de Robert Louis Stevenson, de 1886. O avanço da razão sobre o sagrado inspira medo. Os filmes de zumbis abandonaram o sobrenatural para expressarem o temor de experiências científicas e das pandemias.
Mas o terror, que pode ter sua origem em “Drácula”, de Bram Stoker? Ele recua no ocidente iluminista e fica ilhado na Europa oriental e na Ásia, terras atrasadas e preconceituosas. De lá, os espíritos saem para assombrar a civilização. De lá, vêm vampiros, lobisomens, demônios, possuídos. A Transilvânia é a pátria do sobrenatural. Talvez seja essa uma boa explicação para a prosperidade dos filmes de terror a partir de “A mansão do diabo”, de George Meliès (1896).
“Cadáver”, dirigido pelo cineasta holandês Diederik Van Rooijen, com filmografia pequena e em grande parte dedicada ao sobrenatural, e roteirizado por Brian Sieve, mostra bem o contraste entre o sagrado e o profano. Uma moça é possuída pelo demônio. A tentativa de exorcismo fracassa e seu pai decide matá-la. Misteriosamente, seu corpo é mutilado e acaba num necrotério ultramoderno. Está definido o contraste entre o sagrado e o profano.
Uma mulher que luta contra o vício de drogas e que carrega uma história de culpa, além de uma relação amorosa mal resolvida, aceita trabalhar sozinha no plantão da noite do necrotério. Ela não conseguiu defender seu colega quando era policial. Acostumada com a morte, ela não teme o trabalho. Então, coisas estranhas começam a acontecer. O cadáver da moça exorcizada recupera a vida pouco a pouco na medida em que mata. O racional se choca contra o irracional.
O filme resvala para estereótipos, tipo ruídos repentinos e bolinhas de beisebol quicando sem jogadores. O cadáver também se comporta muito como as assombrações japonesas que estiveram em voga nos filmes de terror vindos de lá. Algo entre gente, aranha e cabelos.
Não tirarei a surpresa de ninguém se disser que a mocinha sobrevive ao demônio. O filme não promete continuação. O cadáver não é como o de “A autópsia”, que move ligeiramente o dedão do pé depois de liquidar suas vítimas, indicando uma possível continuação se for bem de bilheteria. “Cadáver” pode também ser lido como a luta vitoriosa de uma mulher depressiva.