Redijo apenas anotações de leituras feitas recentemente. Trato de cinco ficcionistas não iniciantes. Algumas já são viajantes experimentadas, como Vilma Arêas e Patrícia Melo. Começo com Leda Cartum, que escreveu “Porto” (São Paulo: Iluminuras, 2016). Ela é uma típica represente da alta modernidade ou da supermodernidade, segundo conceito do antropólogo francês Marc Augé. Seu individualismo se expressa no intimismo de um casal que divisa o mundo, o espaço, o tempo, o mar, o porto, o navio. O eu literário é intimista e individualista. Parece imitar o estilo de Clarice Lispector. Mar, viagem, navio, porto, cais. São textos curtos, como poemas em prosa.
Ela escreve de forma poética: “Mais tarde um rato enorme de Veneza passou por entre os pés deles enquanto jantavam: era um rato tão grande que já tinha passado pelos pés de gerações e gerações de pessoas porque estava na cidade desde a sua fundação.” Na minha avaliação, apressada, não é um livro fundamental para a literatura de hoje no Brasil.
Já “Agora e na hora”, de Heloisa Seixas (São Paulo: Companhia das Letras, 2017), revela mais densidade. A trama é mais complexa: amiga de um escritor e narradora do romance, ela encontra o amigo morto em seu apartamento. Ele deixou duas pastas, com uma delas contendo os originais de um livro de contos. Outra com texto na primeira pessoa. Seu falecimento é estranho. A narradora reúne o conteúdo das duas pastas num só volume.
Uma amostra dentre outras: “Braços, pernas, corpos colados, se envolvendo, se buscando, e a saliva que queimava, queimava. Sem nunca se soltar da boca que a sustentava, começou a arrancar as roupas dele, arranhando a pele na sofreguidão de tirar os botões de suas casas, mãos que só se acalmaram um pouco quando deslizaram pela pelugem do peito musculoso (...) O homem cobriu-a com seu peso, o cheiro de suor e lavanda, a lavanda que ela amava, dos campos lilases da Provença, dos campos de carne daquele corpo que teria de abandonar (...) Submissa, a mulher esperou. Ele ergueu os braços dela para trás, deixando-a rendida, crucificada. Segurou-lhe os punhos com força e, inclinando-se, beijou o ponto entre os seios, o pequeno deserto do plexo solar, feito de cartilagem, pele, ossos”.
Divagações como esta apresentam tom semelhante ao de uma fotonovela ou de romance de banca de revista. Pensei em Corín Tellado. Quem se lembra hoje de María del Socorro Tellado López, falecida em 2009 completamente esquecida. Ela nasceu na Espanha em 1927 e se tornou muito popular com romances e fotonovelas melodramáticas sempre enfocandoum homem e uma mulher, seu amor, seus conflitos e seus desejos. De leitura fácil, Corín Tellado teve muitos apreciadores na época em que as redes sociais ainda não existiam. O romance de Heloisa tem altos e baixos.
Patrícia Melo, que há muito tempo eu não lia, chamou minha atenção com“Gogmagog” (Rio de Janeiro: Rocco, 2017). Ela foi considerada o Rubem Fonseca feminino, com seus romances policiais marcados por muita violência. Hoje, ela mora na Suíça. “Gogmagog” é seu décimo romance e enfoca um tema bastante atual: o clima violento de uma grande cidade. Os efeitos de um ambiente hostil sobre pessoas comuns não ligadas a crimes. De todas as poluições, a mais destacada é a sonora: “Não há mais silêncio em lugar nenhum, porque hoje o silêncio é um artigo para ricos”.
Um professor casado com enfermeira que fotografa seus doentes terminais enfrenta a violência cotidiana na escola pública de hoje. Ele é pacífico. Contudo, um vizinho barulhento desperta sua face violenta. A situação é bastante comum nos edifícios de apartamentos de hoje. O professor pratica violência num surto de desequilíbrio mental e se torna vítima da própria violência.
Uma ilustração do romance: “De repente, parece que ocorreu uma revolução dos sapatos. Todo mundo se calçou. Sapatos de todas as cores, e modelos, apareceram em nossos pés. O progresso é assim. Sapato vem depois da roupa. Roupa vem depois da comida. Macarrão vem antes do frango. Passamos décadas sem saber o que era frango. E não é que agora está na nossa mesa? Ao lado do arroz e feijão? Comemos aves porque o Brasil progride. Se bem que nada do que estou citando como exemplo tem validade, agora que o Brasil regrediu. Voltamos para a fase pré-frango. Pré-sapato também. Mas o que quero dizer é que precisamos saciar nossa fome, estarmos vestidos e calçados, termos o básico bem provido, antes de ficarmos loucos”.
E o professor, num acesso de descontrole, assassina o vizinho barulhento e esquarteja seu corpo. O livro é bastante atual quanto ao sistema prisional brasileiro. Patrícia Melo também empreende uma análise arguta e bem-humorada do Brasil na passagem do governo Dilma para o de Temer.
Julia Wähmann, por sua vez, editou “Manual da demissão” (Rio de Janeiro: Record, 2018), seu segundo romance. Como no caso de Patrícia Melo, seu livro trata de uma questão bastante atual: o desemprego. O romance é bem-humorado, tendo como personagem principal uma desempregada na era Dilma-Temer. Julia se dirige ao leitor, dizendo-lhe sempre “você sabe”. Os capítulos têm títulos engraçados, geralmente ditados populares ou divulgados por empresas: Cada macaco no seu galho, Deus ajuda quem cedo madruga, A cavalo dado não se olham os dentes, Amor e tosse não dá pra esconder, Vem pra Caixa você também, A ociosidade é a mãe de todos os vícios, Quem não chora não mama, A união faz a força, Quem corre por gosto não se cansa, Sonhar não custa nada, Quem espera sempre alcança (Como Dilma: “Nunca antes na história deste país”), O seguro morreu de velho, Uma andorinha só não faz verão, Manda quem pode, obedece quem tem juízo, Focinho de porco não é tomada, Quem morre de véspera é peru de Natal, Em tempo de guerra, urubu é frango, A dor ensina a gemer, Tristezas não pagam dívidas, Camarão que dorme a onda leva, Vão-se os anéis, ficam os dedos, Amigo é coisa pra se guardar, Quem ri por último ri melhor.
Numa passagem sobre o que se deve ter na mesa em tempos de demissão sumária, a autora faz uma listagem ao estilo de Umberto Eco. Há bastante humor em falar da burocracia do desempregado em intermináveis filas e na busca dos lugares certos para conseguir o FGTS. Desempregados de classe média partem para Portugal a fim de encontrar um novo emprego. Despedidas de amigos. Ela, a narradora, que fica. O romance é datado e não deve permanecer. Não deve ter vida longa. Mas é leve e agradável para leitura.
Vilma Arêas é campista. Como alguns naturais da terra goitacá, ela se tornou professora numa universidade conceituada: a Unicamp. Recentemente, ela lançou o livro “Um beijo por mês”, que procurei incansavelmente e não encontrei. Li dela, então, “Vento sul” (São Paulo: Companhia das Letras, 2011).O livro reúne contos que evocam o norte fluminense. Em “Thereza”, ela escreve: “à beira do Paraíba do Sul”. Registra aindafreguesia de S. Salvador, caboio, fresca do nordeste, rio, vento sul, casuarina, restingas, brejos, Macaé, entojo, rinha, vento sul. Campos não aparece de forma explícita. No conto “Linhas e trilhos”, a cidade se torna mais reconhecível: “Matadouro (...) tinha um abate perto do rio. A molecada andava em cima do dique para espiar (...) A Prefeitura mandou fazer o dique por causa das enchentes.”Estamos no bairro do Matadouro, local em que foi erguida a UENF. Ela ainda escreve ficções em que aparecem restinga, pesca com puçás, areia amarela, praia, ponte de madeira esburacada sobre a lagoa, mangue, fuligem, foz do Paraíba do Sul, bonde sacolejante de Matadouro.
Mas não se está à procura das origens. No todo, o livro de Vilma Arêas reúne contos serenos e sólidos.
Por fim, Noemi Jaffe, com “Não está mais aqui quem falou” (São Paulo: Companhia das Letras, 2017). O livro não é romance nem conto nem crônica nem artigo de qualquer natureza ou ensaio. São textos, reflexões meio superficiais em registro superior ao de Tati Bernardi, mas aquém de muitos autores. Não preenche interstícios, mas se sobrepõe como pegadas sobre pegadas. A autora atenta para relações inesperadas entre Einstein e Cayme, Duras e Rubens Braga, Manuel Bandeira e Becket.