Uma obra musical misteriosa
* Arthur Soffiati - Atualizado em 08/11/2018 18:26
Comecei a procurar discos com a obra de Brahms em 1964. Eu contava com 17 anos e não tinha um toca-discos. Vivia-se a era do vinil. A busca pelas obras de câmera do autor foi demorada e perseverante. Consegui reunir as 25 composições para câmera no início dos anos de 1990, quando o CD começava a expulsar o vinil. Encontrei, inclusive, o trio composto na juventude e rejeitado por ele. Daí não contar com numeração nas obras completas, que, aliás, é pequena em relação à obra de Bach, Mozart e Beethoven.
O senso crítico de Brahms era implacável. Consta que ele escreveu três vezes mais do que considerou oficialmente sua obra. No conjunto, ele ainda aceitou outras, que orquestrou ou arranjou para vozes, mas não numerou. No mais, ele rasgou tudo ou quase tudo. Se as obras numeradas atingem 122 composições simples ou compostas, ele deve ter escrito em torno de 350 composições. Dois terços foram eliminados. Mas alguma coisa sempre escapa da fúria dos perfeccionistas como Brahms. Para ele, nada menos do que o perfeito servia.
O trio para piano n º 1 em si maior, op. 8, por exemplo. Brahms o concluiu em janeiro de 1954, aos vinte anos de idade. Sua estreia se deu no ano seguinte, em Danzig. Creio que muito compositor romântico desejaria compô-lo. No entanto, Brahms o revisou em 1889, por considerá-lo repleto de falhas. Ao todo, ele compôs, oficialmente, três trios para piano, violino e violoncelo. A revisão do opus 8 pode ser considerado o quarto, tamanhas as modificações feitas na primeira versão. Pode-se reconhecer no trio op. 8 revisado as linhas melódicas da versão original, mas o aprimoramento em termos de contraponto é notável. Ele se tornou uma obra da maturidade de Brahms. Gosto das duas versões. Lógico que a segunda versão, aprimorada e despida de uma fuga da primeira versão, está mais consonante com o Brahms da fase final. Esta versão passou a ser a oficial, mas a primeira não podia mais ser descartada porque ela já estava publicada e disseminada pelo mundo musical.
No início dos anos de 1990, eu tinha em minha coleção de discos em vinil as duas versões do trio opus 8, além do trio não numerado e considerado póstumo. Esse trio foi descoberto em 1924 no meio de jornais que o musicólogo Ernst Bucken herdou do colecionador musical Erich Preiger. O manuscrito não tinha título nem autor. Examinando-o, Bucken encontrou nele semelhanças estilísticas com a obra camerística de Brahms, sobretudo com o trio opus 8. A confiança aumentou com o texto de uma carta de Brahms a Schumann, que muito o apoiou no início de sua carreira. Brahms revelava, na carta, que compusera vários trios nos anos de 1850.
O trio descoberto foi publicado em 1938, tendo o original desaparecido logo depois. Sem o manuscrito, a discussão a respeito do trio aumentou. Em artigo, Richard Fellinger levantou a possibilidade de ser a obra composta por um amigo de Brahms. A discussão prosseguiu sem uma conclusão sobre a autoria da peça. Estilisticamente, ela contém todos os elementos para ser creditada a Brahms.
O tempo do vinil passou. Comecei a adquirir a obra de Brahms e de outros compositores em CD. Por volta de 2006, encontrei as obras completas do compositor nos Estados Unidos. Fiz economias e adquiri uma caixa com todas as composições de Brahms. Deleitei-me com as que eu ainda não conhecia. O trio descoberto após sua morte estava lá. Como eu o ouvira várias vezes, não me importei com ele até que um dia, apreciando outras obras que estão no mesmo CD, eu me descuidei e uma música estranha aos meus ouvidos soou.
O que era aquela composição cujos créditos eram os mesmos do trio póstumo? Ela figura nas obras completas de Brahms. Como o trio póstumo que eu conhecia, este também foi composto em Lá maior. Este também conta com quatro movimentos: moderato, vivace, lento e presto, os mesmos do trio que eu conhecia. Mas, ao ouvi-lo, era uma outra composição com movimentos distintos daqueles que figuravam nos créditos. Era outra composição, sem dúvida.
Como ter certeza de que foi composta por Brahms? Recorri ao guia das obras completas. As informações eram as mesmas relacionadas ao trio póstumo que eu conhecia: composto em 1853, encontrado por Ernst Bücken em 1924 e publicado em 1938. Recorri ao Youtube. Encontrei os quatro movimentos dela. Caso alguém queira conferir e me ajudar, os links, pela ordem, são esses: https://www.youtube.com/watch?v=0HcqNJHx5Tk; https://www.youtube.com/watch?v=gi7sMRRcExc; https://www.youtube.com/watch?v=ZqbaJ9OIIE4; https://www.youtube.com/watch?v=slTqghDLMOg.
Recorri, então, a minha intimidade com a música de Brahms. A princípio, o trio não parece composição dele. Mas, depois de ouvi-lo várias vezes, traços do compositor começam a emergir. Raras são as peças camerísticas de Brahms em três movimentos. Geralmente, comportam quatro movimentos longos. O trio desconhecido também conta com quatro movimentos. A análise interna igualmente me leva a concluir que a obra data da juventude do autor. Deve ser um dos trios descartados, mas não rasgados. Talvez Brahms tenha poupado algumas composições com a intenção de aproveitar as ideias musicais deles no futuro.
Nos quatro movimentos, os cantabili, o trabalho contrapontístico e o piano se apresentam como em outras obras suas. A eufonia, as frases melódicas (verdadeiros parágrafos musicais), os retornos ao tema principal sempre o modificando, a leve melancolia do segundo movimento, a influência de Bach no terceiro movimento, a fuga no quarto movimento são característicos de Brahms. Portanto, até melhor juízo, eu o atribuo a meu compositor predileto.
Se perguntarmos a um leigo sobre a obra camerística de Brahms, provavelmente receberemos uma outra pergunta como resposta: quem é esse cara? Se fizermos a mesma pergunta a um apreciador de música erudita, provavelmente ele não saberá quantas obras de câmera Brahms compôs, assim como eu não saberia o número de obras de câmera que Mozart compôs. Seria necessária uma consulta.
Restringindo ao número de trios, a resposta torna-se mais difícil ainda. Tenho intimidade com a obra de Brahms. Oficialmente, ele compôs cinco trios. Três para piano, violino e violoncelo, a forma clássica do trio. O opus 8 (opus significa obra), o opus 87 e o opus 101. Compôs também um trio para piano, violino e trompa (op. 40) e um para piano, violoncelo e clarinete (op. 114).
Mas empreendendo uma prospecção arqueológica na obra do compositor romântico alemão, encontraremos a primeira versão do trio op. 8. Trata-se da versão original do trio e não se perdeu porque já estava impressa. Havia várias cópias dele espalhadas por vários lugares. Brahms não conseguiria resgar todas. Em 1924, foi encontrado um trio com todas as características de ter sido composto por Brahms. Por fim, encontro, nas obras completas do autor, um trio estranho, mas com traços de composições brahmsianas. Elevo, portanto, o número de trios do autor para oito. Não creio que novos inéditos sejam encontrados, pois Brahms foi muito competente em rasgar o que não o agradava ou pudesse comprometê-lo. Refiro-me às cartas de um provável romance entre ele e Clara, viúva de Schumann.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS