Na Europa do século XVII, firmou-se o ditado segundo o qual não havia pecado abaixo da linha do Equador. Gaspar Barlaeus, historiador do Brasil holandês, confirmava o ditado: “Ultra aequinoxialem non peccari”. Era “Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício”. Tanto Sérgio Buarque de Holanda quanto seu filho Chico Buarque de Holanda aproveitaram a máxima em livro e música.
O livro “Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese”, organizado por Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima e Carla Jaimes Betancourt (Belém: IPHAN/Ministério da Cultura, 2016) com o capítulo “Não existe neolítico ao sul do Equador: as primeiras cerâmicas amazônicas e sua falta de relação com a agricultura”, de Eduardo Góes Neves, professor da USP. O título é provocativo e motiva discussão logo de início. Para iniciar o debate, examinemos um mapa-mundi. O que conhecemos como neolítico, ou seja, período em que algumas sociedades humanas se sedentarizaram com a domesticação de plantas e animais, encontram-se ao norte da linha do Equador. A agricultura e o pastoreio permitiram vida sedentária e com ela a fundação de aldeias, a divisão sexual e técnica do trabalho, a invenção da cerâmica, de artefatos de pedra polida, a roda, a cestaria, a tecelagem e a metalurgia. Estavam lançadas as bases para alcançar o que se chama de civilização.
Sucede, porém, que a passagem de uma vida nômade no Paleolítico superior para uma vida sedentária no Neolítico não é fruto do acaso, do voluntarismo e do ócio. Grupos constituídos pelo “Homo sapiens” existem há pelo menos 200 mil anos. É de se perguntar, então, por que vegetais e animais não foram domesticados antes de 10 mil anos. Minha explicação provisória (sempre provisória) é que o cérebro humano não estava ainda muito desenvolvido e não responderia ao desafio representado por um mundo frio para um mundo quente, como aconteceu com o aquecimento do mundo em 11.700 antes do presente.
O aquecimento natural do planeta foi muito mais acentuado no norte do Equador que no sul. Daí a resposta ao desafio ser mais intensa no hemisfério norte. No sul, as florestas existentes recuaram e foram substituídas por savanas, estepes e desertos. As mudanças ambientais no hemisfério sul não foram tão fortes como no hemisfério norte.
Mesmo assim, agricultura e pastoreio foram inventados, abaixo do Equador, na América do Sul, na África, na Austrália e na Polinésia. O que se pode verificar com certeza é que a agricultura se desenvolveu em toda a América do Sul. A domesticação de animais não tanto. A riqueza de recursos naturais deve ter dispensado em grande parte o pastoreio. Na Amazônia, a floresta provia sua grande população, estimada em 10 milhões de pessoas, com recursos naturais. Mesmo assim, a arqueologia vem demonstrando que os povos amazônicos desenvolveram técnicas de manejo florestal e práticas agrícolas protegendo a floresta.
As tradições cerâmicas podem ter focos de criação, mas tudo indica que a difusão colocou em contato técnicas e temas de fabricação cerâmica da costa americana do oceano Pacífico ao Maranhão, passando pelos Andes. Eduardo Góes Neves identifica quatro centros originais de cerâmica: 1- Valdívia, no litoral equatoriano; 2- San Jacinto e Puerto Hormiga, no baixo rio Magdalena, Caribe Colombiano; 3- Mina e talvez Alaka, entre o Suriname e o golfão maranhense; e 4- Taperinha, no sambaqui fluvial homônimo, no rio Amazonas, perto da atual Santarém. De todas, a mais antiga cerâmica é a de Taperinha, com cerca de 7.000 anos. Lembremos que, no velho mundo, a mais antiga cerâmica conhecida é a de Jomon, no Japão, com 9.000 anos.
O autor seguido informa que Betty Meggers, no final da vida, notava a semelhança entre todas as tradições cerâmicas entre a costa do Pacífico (onde hoje existe o país Equador) e o Maranhão, pressupondo, assim, um centro único de produção de cerâmica, do qual as técnicas e tecnologias de fabrico teriam se difundido por toda a extensão da área delimitada. A cerâmica andina, não seria, portanto, a mais antiga. Ela teria sido criada nas terras baixas do Pacífico e da Amazônia. A falta de pedra, na Amazônia, teria sido compensada com terras plásticas.
Neves aventa que a agricultura na América meridional não foi tão importante como na Eurásia e que “não há uma correlação observada entre a domesticação de plantas e o início da produção cerâmica no novo mundo (...) É plausível supor que no Novo Mundo não houve pressões adaptativas para uma adoção rápida da agricultura, mesmo com um quadro de domesticação antiga de plantas, do mesmo modo que houve pouquíssima pressão para a domesticação de animais”.
Ele pondera, inclusive, que o milho foi domesticado na Mesoamérica, na região do rio Balsas, em torno de 7000 anos, espalhando-se rapidamente por todo o continente até a costa do atual Uruguai. Quando Colombo esbarrou na América, em 1492, as plantas com maior dispersão no continente eram o milho e o tabaco, cujos usos eram mais ligados à recreação e a práticas religiosas. A conclusão do autor é a de que agricultura e cerâmica não estão tão relacionadas na América como estão na Eurásia. Ele recomenda mais pesquisa.
Resumindo, a agricultura, na América, é mais antiga do que se supunha. Novas descobertas arqueológicas mostram que ela não teve relevância apenas nos polos andino, maia e mexicano e em áreas adjacentes a eles. Ela também foi pujante na Amazônia, num sistema que associava manejo florestal e produção agrícola, sobretudo na confluência da Amazônia com o Cerrado. A diversidade de plantas domesticadas foi maior que o imaginado. Lembremos o milho, o cacau, o tabaco, o tomate, as batatas, as abóboras, o aipim etc. O pastoreio não teve muita relevância talvez por grande parte da fauna nativa ser recalcitrante à domesticação. As que se deixaram domesticar foram poucas, como o lhama, a alpaca e o peru.
A produção cerâmica foi pujante em quase toda extensão do Novo Mundo. As áreas mais significativas são a América do Norte, entre o sul dos Estados Unidos, e a América Central e a América andina e amazônica. Mas a cerâmica se estendeu por uma área bem mais ampla do território americano. Deve-se afastar o acaso e o diletantismo estruturais para explicar a origem da agricultura, do pastoreio e da cerâmica na América. Se agricultura e cerâmica americanas não aparentam relações estreitas, como na Eurásia, é temerário pensar que ambas nasceram por diletantismo dos povos americanos. Elas têm relação com o neolítico nas Américas, que apresenta características singulares. Abaixo do Equador, não houve um resfriamento rápido e intenso como acima dessa linha. As florestas e outros ecossistemas compensaram a agricultura com recursos naturais.
Das sociedades neolíticas, nasceram as civilizações, entendidas estas como sociedades com divisão territorial e social do trabalho. Nelas, foram possíveis as especializações. Assim, constituiu-se uma minoria governante e sacerdotal. Os militares cuidavam da segurança interna e da guerra de defesa e de conquista. Os agricultores e pastores estavam incumbidos da produção de alimentos. Os artesãos especializaram-se na fabricação de artefatos de pedra polida, de cerâmica, de cestaria, de tecelagem, de obras arquitetônicas e da contabilidade. A escrita não funda uma civilização. É o contrário. Exige-se grande complexidade social para que a escrita seja desenvolvida. Astecas e maias usaram escritas hieroglíficas. Os incas não a desenvolveram.
Discute-se atualmente se povos da Amazônia alcançaram o nível de civilização. A agricultura e o manejo de florestas foram bastante aprimorados. Algumas tradições cerâmicas alcançaram padrões de excelência, como a marajoara e a de Santarém. O polimento da pedra, a cestaria e a tecelagem eram conhecidos. Contudo, a roda, prédios, núcleos urbanos, estradas e escrita não. Certas tradições amazônicas ultrapassaram o neolítico, mas não alcançaram o nível de civilização. É a conclusão provisória.