Aluysio Abreu Barbosa
13/10/2018 18:18 - Atualizado em 16/10/2018 18:24
Considerado um dos maiores intelectuais de Campos, o historiador ambiental Aristides Soffiati seria o que a bipolaridade política do país hoje classifica de “isentão”. A referência se dá a todos aqueles que não submetem aos dogmas dos dois candidatos que disputam o segundo turno da eleição presidencial: Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT). Alheio ao fundamentalismo político, Soffiati aposta na sobrevivência da Constituição de 1988 e faz críticas contundentes ao simplismo de Bolsonaro e Wilson Witzel (PSC), candidato a governador do Rio. Para ele, antes mesmo do resultado final, os dois “já estão estimulando atos violentos”. Mas é igualmente crítico ao outro lado: “A vaidade de Lula e do PT poderá levar toda a centro-esquerda ao naufrágio”.
Folha da Manhã – Como historiador, entende que o Brasil da Nova República, construído após a ditadura militar (1964/85), acabou? O que estamos colocando no lugar?
Aristides Soffiati – Wladimir Safatle (filósofo da USP) sustenta, no seu último livro, que a Nova República e o lulopetismo se esgotaram. Não vejo o fim da Nova República só porque um candidato de direita ameaça chegar ao governo. Isso faz parte da democracia. Havendo respeito à Constituição, a Nova República continua. Nada, na Constituição, estabelece que a polarização partidária se restringe ao PSDB e ao PT. Se a Constituição for rasgada, podemos falar de outra era. Nesse caso sim, cabe rebelar-se.
Folha – Após o compromisso com a Constituição assumido por Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) no Jornal Nacional, no dia seguinte (8) ao primeiro turno, a Carta Magna de 1988 deve ser a único sobrevivente da transição democrática?
Soffiati – Ela pode sofrer emendas, mas não substituída por outra. A Constituição é a maior garantia da república e da democracia. Só uma legítima Assembleia Constituinte pode substituí-la, e o clima político do momento não é nada favorável para a substituição.
Folha – No discurso em que promulgou a Constituição, há 30 anos, o ex-deputado federal Ulysses Guimarães fez duas observações assertivas: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo” e “Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube”. Porém, o segundo turno presidencial será disputado por um candidato que diz que a ditadura militar no Brasil não existiu, contra outro que tem como seu principal cabo eleitoral um político preso por corrupção. O brasileiro ficou surdo ao longo das última três décadas?
Soffiati – De fato, declarações e atos como esses mostram que a democracia no Brasil ainda é frágil. Ainda estamos construindo uma civilização democrática. Não basta ter uma constituição. É preciso uma cultura constitucional. A sociedade brasileira é conservadora. Ela condena a grande corrupção, mas não a pequena, praticada cotidianamente até pelos pobres. A maioria das pessoas parece não abominar declarações e ações autoritárias e ditatórias desde que seus interesses particulares sejam preservados.
Folha – Do processo de redemocratização do Brasil, o único líder ainda protagonista na política nacional, mesmo preso desde 7 de abril, é Lula. Chegou a hora de deixá-lo para trás, ou as urnas de 7 de abril dominadas pelo antilulismo já fizeram isso?
Soffiati – Não podemos reduzir a esquerda brasileira ao PT. Ela é mais ampla. Quanto ao PT, percebo que o partido passou a confiar muito em si com quatro vitórias para a presidência da república. Lula passou a ser uma liderança carismática em detrimento da prudência. Aos petistas, em grande escala, pareceu que Lula seria eterno. A lucidez de alguns de seus membros não foi levada em conta. As críticas foram repelidas com ira. Agora, o PT corre o risco de perder a eleição, com ameaça para a democracia. Vejo que o PT colocou o partido acima da democracia.
Folha – Impressiona como pessoas inteligentes ainda se negam a reconhecer os erros da esquerda. Foi assim no Mensalão, no maior escândalo de corrupção da Terra eviscerado pela Lava Jato, na maior recessão econômica da história do país criada pelo governo Dilma, no impeachment da presidente, na condenação e prisão de Lula por corrupção e, agora, com a derrota fragorosa nas urnas. A esquerda vai morrer sem fazer autocrítica?
Soffiati – A crítica e a autocrítica têm sido feitas por alguns integrantes do partido, como Jacques Wagner, por exemplo, por democratas mais afastados do partido, como Rui Fausto. Contudo, o PT tem dado mais ouvidos a conselheiros nocivos. Certos nomes são danosos ao PT, como José Dirceu e Gleisi Hoffmann. Espero que, vencedor ou derrotado, o PT faça uma avaliação da sua trajetória e que assuma a posição de uma centro-esquerda responsável. Mas, para os democratas autênticos, como Ciro Gomes e Marina Silva, o PT não merece o apoio deles, já que ambos conhecem as manobras. Ciro e Marina não deram o apoio que o PT esperava. Não acho que a falta de apoio de ambos resulte de ressentimentos, mas de perceberem que as práticas do PT não são tão democráticas como o partido propala.
Folha – Todas as pesquisas indicavam que Ciro seria o nome mais consistente da esquerda para enfrentar Bolsonaro no segundo turno. Ex-governador da Bahia que se elegeu senador no dia 7, Jaques Wagner foi o único que ousou questionar Lula, tentando a composição do PT como vice na chapa de Ciro. O cearense era “bola da vez” da esquerda? Foi o medo de Lula em apoiar alguém com luz própria que definiu Haddad?
Soffiati – Esse é um grave equívoco do PT: julgar que só ele representa a democracia. As pesquisas mostraram que Ciro Gomes era o candidato mais habilitado a derrotar Bolsonaro no segundo turno. Contudo, Gleisi Hoffmann deu uma declaração infeliz sobre Ciro, como se ele fosse inimigo da democracia. Haddad assumiu a candidatura depois de muita manobra frustrada do PT para lançar Lula como candidato. Haddad perdeu um tempo precioso, além de não conseguir se descolar de Lula. Agora, o PT faz manobras de última hora para que o carro não caia no precipício, como afastar Haddad de Lula, usar as cores da bandeira brasileira e adotar um discurso moderado. Avalio que uma chapa bipartidária, com Ciro como candidato a presidente e Haddad como vice, convenceria mais o eleitor. Sei de votantes em Ciro que agora apoiam Bolsonaro. A vaidade de Lula e do PT poderá levar toda a centro-esquerda ao naufrágio.
Folha – Em relação às redes sociais, é inegável o protagonismo da tecnologia nos protestos das “Jornadas de Junho” de 2013, nas manifestações pelo impeachment de Dilma em 2015 e 2016, e na cruzada contra as artes e artistas do país a partir da exposição do Queermuseu de 2017. A direita brasileira aprendeu antes a nova forma de mobilização popular? A esquerda ficou anacrônica nos meios?
Soffiati – Os dois lados sabem usar as redes sociais, mas a direita as emprega com mais eficiência, inclusive de forma alarmista e falsa. Mas no Face tenho encontrado mais petistas usando o meio que os bolsonarianos. Pena que se valem sempre de frases feitas.
Folha – Se mostra sua força nas redes sociais, nelas a direita também evidencia sua boçalidade. Chegou-se a absurdos vexatórios como pretender ensinar a história da Alemanha aos alemães, o cristianismo ao Papa, o liberalismo econômico à revista The Economist e até o significado da letra da música “Another Brik in The Wall” ao seu próprio compositor, o inglês Roger Waters. Umberto Eco estava certo: “as redes sociais deram voz aos imbecis”?
Soffiati – Eco explicou numa crônica que as redes sociais permitiram que os imbecis propalassem sua voz. Ele disse que os imbecis também merecem falar. Pior que o imbecil genuíno é o intelectual que se comporta como imbecil. No atual momento brasileiro, é melhor ficar calado ou fazer declarações ponderadas. Letras de Waters, anteriores às eleições brasileiras de 2018 tem sido criticadas como se fossem escritas para o PT ou como se fossem dirigidas a Bolsonaro. Ora, Waters critica qualquer forma de autoritarismo, à direita ou à esquerda há muito tempo. Não tem cabimento descontextualizá-las.
Folha – Por outro lado, a desinteligência e a arrogância da esquerda deram sua demonstração mais recente na introdução das cores pátrias verde, amarelo e azul na campanha de Haddad, no segundo turno, que abandonou o vermelho do PT e até a imagem de Lula. Na manifestação do “#EleNão” na praça São Salvador, em 29 de setembro, o único manifestante que apareceu com uma bandeira do Brasil foi confundido com simpatizante de Bolsonaro. Ressentida pelo apoio de camisa amarela ao impeachment de Dilma, a esquerda deixou as cores nacionais à direita. E, com a bandeira, deixou junto o país. É possível recuperá-lo até o dia 28?
Soffiati – Parece que lembraram da bandeira do Brasil tarde demais. Ela e o hino são de todos. O PT deixou a Bolsonaro o discurso em favor da restauração dos símbolos nacionais. Não tenho bandeira. Esse discurso não me atinge. Mas, com um discurso simplista, Bolsonaro chega à população. De quem é a responsabilidade pela ascensão de Bolsonaro? A sua competência o ao descrédito da população? O PT terá coragem de afirmar que a população é despolitizada? Se o povo tem sempre razão num discurso populista de esquerda, então deve-se reconhecer que o povo acertou em dar a vitória a Bolsonaro. No final das contas, a população está interessada na segurança física e econômica.
Folha – Desde o dia da eleição, casos de violência por intolerância política se espalharam por todo o Brasil. O mais grave foi o assassinato do mestre capoeirista Romualdo Rosário da Costa, de 63 anos, conhecido como Moa do Katendê, morto com 12 facadas nas costas por um simpatizante de Bolsonaro. Apesar de também ter sido alvo de uma facada desferida por um ex-militante do Psol, Bolsonaro tem muito apoio nas Polícias nas Forças Armadas. Corremos o risco da conflagração? O discurso de ódio contra as minorias pode gerar sua perseguição?
Soffiati – Tenho medo que a vitória de um dos lados seja entendida como aval tácito para deflagrar mais ódio e perseguições. Isso aconteceu com a vitória de Allende por seus próprios eleitores. Pergunto como será o dia seguinte da eleição de segundo turno. Bolsonaro conseguirá impedir a violência triunfalista de seus eleitores? O PT já formulou um plano B democrático? Li num jornal português que os gays deixarão o país. Se a tática for essa, não ficará ninguém para resistir.
Folha – Bolsonaro já disse que quer ter um ministro da Educação “que expulse a filosofia de Paulo Freire” das escolas brasileiras. Se isso se concretizar, dificilmente será sem resistência do magistério. Casos polêmicos recentes, como a fiscalização da Justiça Eleitoral de Campos sobre UFF e IFF, podem ser um tubo de ensaio do que está para acontecer em todo o país?
Soffiati – Temo que Bolsonaro inicie um processo de privatização das universidades públicas, absorva o ministério da Cultura pelo ministério da Educação, junte os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Depende dele essas iniciativas. Não há educação sem partido. Ou ela é crítica ou é conformista e reacionária. Anuncia-se que um representante da UDR, que eu julgava extinta, será indicado para Agricultura e Meio Ambiente. Bolsonaro quer ser um Trump subdesenvolvido, tirando o Brasil do Acordo de Paris e buscando uma soberania não mais admissível num mundo globalizado. O PT nunca deu a devida importância à área ambiental, ainda considerada uma questão menor. Espero muita movimentação da sociedade com a vitória de Bolsonaro.
Folha – Após receber o apoio da família Bolsonaro em sua campanha, o ex-juiz federal e candidato a governador Wilson Witzel (PSC) surpreendeu a todos, com uma arrancada fulminante no primeiro turno, sendo considerado o favorito no segundo contra Eduardo Paes (DEM). Witzel fala abertamente em “abater” qualquer suspeito de portar um fuzil, prática que no último dia 18 levou PMs a assassinarem a tiros um trabalhador na comunidade do Chapéu Mangueira, no Rio, que estava com um guarda-chuva. Se o ex-juiz vencer, o que esperar?
Soffiati – Eu só conhecia Bolsonaro por suas posições reacionárias. Só recentemente, ouvi falar em Witzel. Acho que ambos não têm valor intrínseco. Nenhum dos dois tem experiência no poder executivo. Eles estão aproveitando o contexto atual de violência e corrupção para avançar com um discurso simplório, mas convincente. Antes mesmo do resultado final, eles já estão estimulando atos violentos. Temo situações piores se ele vencer. Espero que o Judiciário e os setores esclarecidos da sociedade estabeleçam limites.
Folha – Wladmir Garotinho (PRP) foi eleito deputado federal, ao contrário de Marcão Gomes (PR), prejudicado pela força da legenda dos candidatos do PSL de Bolsonaro. Com a vitória do filho de Anthony Garotinho (PRP) e a derrota do aliado de Rafael Diniz (PPS), como devemos caminhar das urnas de 2018 às de 2020, a prefeito de Campos?
Soffiati – Mais que Lula, Garotinho consegue dar nó em pingo d’água. Embora afastado da eleição e, por enquanto, da prisão, ele conseguiu eleger dois filhos. Garotinho sabe tumultuar, mas ainda tem influência na política. Mais de uma vez, declarei que Rafael deve fazer frente a Garotinho com ações que cheguem com clareza ao povo. Garotinho sabe fazer isso muito bem, mesmo por intermédio de outros. Prevejo que um de seus filhos seja candidato a prefeito em 2020.