(Pé Pequeno) — Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, conta num de seus livros que, nos primórdios da colonização europeia da América, os nativos matavam os brancos e lançavam seus corpos na água para verificar se decompunham, pois julgavam tratar-se de espíritos. Por sua vez, os europeus matavam os índios por entenderem que eles eram animais. Por mais cruel que a prática possa parecer, havia convicção de ambos os lados, embora também existisse quem afirmasse a humanidade dos índios no lado europeu, como Las Casas e Montaigne.
Não se pode imaginar uma sociedade unida por princípios religiosos sólidos e ao mesmo tempo mentirosos, em que todos creem menos seus fundadores, como acontece entre os yeti (pés grandes) na animação “Pés pequenos”. O ancião guardador da tradição dos abomináveis homens (e mulheres) da neve sabe que a doutrina é falsa, mas leva todos a acreditar nela. Recorro ao caso de Momboré-Uaçu registrado no Maranhão pelo capuchinho Claude d’Abeville, no século 17. Atribuía-se a ele cerca de 180 anos idade. Em sua fala, ele desmascarou os europeus. Ele não acreditava nas mentiras contadas pelos brancos, mas continuava acreditando nas suas tradições indígenas.
O que tudo isso tem a ver com a animação computadorizada “Pé pequeno”? Tenta-se uma narrativa da expansão europeia pelo mundo ao avesso. São os yeti (abomináveis homens da neve nos Himalaias e pés grandes nos Estados Unidos) que descobrem não serem os únicos no mundo. Um deles descobre um pé pequeno num acidente de avião, mas já existe um grupo dissidente na aldeia dos yeti suspeitando de sua existência. Os pés pequenos são os ocidentais. O grupo dissidente acaba por encontrá-los e descobrir que o ancião responsável pela tradição também sabia da sua existência. Os yeti fugiram para os píncaros dos Himalaias ao serem perseguidos pelos pés pequenos no passado e ocultaram sua existência aos seus descendentes.
Agora, ocorre um novo encontro entre ambos. Os tempos são outros. Estamos em plena fase do politicamente correto, do respeito às diferenças, dos discursos de paz e, sobretudo, dos meios eletrônicos de comunicação. Mas o novo encontro gera desentendimentos. Mesmo assim, os yeti identificam um produtor de televisão como amigo e buscam um acordo de paz entre os dois lados.
O roteiro de Karey Kilpatrick com a colaboração de Glenn Ficarra e John Requa podia ser mais claro e fiel a casos de encontros culturais. Mesmo antes do encontro entre pés grandes e pés pequenos, os primeiros já tinham comportamento com traços globalizados. Se as duas culturas fossem bem diferenciadas no roteiro, as crianças compreenderiam. A direção do próprio Kilpatrick poderia também evitar os muitos trejeitos dos pés grandes para arrancar risadas da plateia.
Se, de fato, yetis nos Himalaias e pés grandes nos Estados Unidos existissem, a essa altura do mundo globalizado eles já teriam sido extintos pelos pés pequenos.