Uma tradição quase esquecida
*Adélia Noronha - Atualizado em 13/09/2018 18:37
Poucas pessoas conhecem a influência da Escola Fisiocrata no Brasil. Ela constituiu-se na França com o médico François Quesnay e outros pensadores. Na segunda metade do século XVIII, com a revolução industrial, duas propostas de desenvolvimento foram constituídas. Na Inglaterra, entendeu-se, acompanhando Adam Smith, que o desenvolvimento seria alcançado com a indústria. Na França, ainda bastante rural, concebeu-se o desenvolvimento por meio da agropecuária. Fisiocracia significa poder da natureza.
Como o Brasil era um país eminentemente rural, não foi difícil a aceitação da proposta francesa. Uma plêiade ilustre de pensadores, vários deles com formação na Europa, voltaram para o Brasil com ideias de independência e fundação de um Estado nacional nos moldes europeus. A base da economia era o latifúndio na forma de sesmarias, terras doadas a quem já tinha bens, a monocultura e o trabalho escravo. Por mais que essa tríade infernal tenha se instituído para atender ao mercado internacional via Portugal, existia um pujante mercado interno no Brasil.
Sobre essa economia rural dilapidadora da natureza e da mão de obra escrava, José Bonifácio de Andrada e Silva concebeu um desenvolvimento com proteção de recursos hídricos e de florestas. Na Assembleia Constituinte instaurada logo após a independência do Brasil, ele apresentou inúmeras memórias. Numa delas, ele acusa a escravidão e não o escravo pela devastação das matas, propondo também o fim progressivo da escravidão, transformando o ex-escravo num pequeno produtor rural. Os índios também seriam integrados ao que ele entendia como civilização. Desnecessário dizer que ele encontrou resistência na aristocracia rural de que fazia parte.
Joaquim Nabuco foi também grande expoente dessa tradição, assim como André Rebouças, Euclides da Cunha e Alberto Torres, esses dois últimos já na República. Por outro lado, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, foi uma voz solitária no Império a defender o desenvolvimento do Brasil pela via industrial. A proposta do barão não prosperou. Só na República Velha e a partir de Getúlio Vargas o industrialismo ganhou corpo.
No que concerne à proposta de desenvolvimento pela via rural no Império, o excelente livro de José Augusto Pádua “Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888)” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002) examina 150 textos de 50 pensadores nesta linha, que avançou pela República e manifestou força até o governo de Juscelino Kubitschek. Hoje, o desenvolvimento pela via rural passou a ser feita pela industrialização da agropecuária com o agronegócio.
Supus que o projeto derrotado de desenvolvimento, proposto pela Escola Fisiocrata, restringia-se, no Brasil, aos liberais esclarecidos, sem reflexos na literatura de ficção. Engana-se quem crê que este pensamento foi expresso pelo romantismo literário. Mas eis que encontro a escritora Júlia Lopes de Almeida, cujas crônicas comentei no mês passado, defendendo o desenvolvimento preconizado por José Bonifácio no romance “Correio da roça” (Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Francisco Alves; Paris: Aillaud, Alves e Cia., 1913). A autora imagina uma troca de cartas entre Fernanda e Maria. Fernanda é uma mulher urbana, casada com um homem que pouco se importa com ela, enquanto Maria é uma viúva com quatro filhas que teve de se mudar para uma propriedade rural deixada pelo marido por não conseguir se manter na cidade.
Enquanto Maria lamenta a sua sorte e a de suas filhas, Fernanda lhe propõe promover na sua propriedade um desenvolvimento semelhante ao defendido pelos fisiocratas brasileiros. Não posso garantir, só com a leitura de “Correio da roça”, que Júlia Lopes de Almeida conhecesse o pensamento de José Bonifácio e Joaquim Nabuco. Ela menciona a leitura frequente de “Chácaras e quintais”, revista famosa na época e que teve vida longeva. Circulou entre 1909 e 1971 com matérias não apenas escritas por jornalistas, mas também com artigos de cientistas em linguagem voltada para leitores do meio rural.
Nas suas cartas a Fernanda, Maria mostra-se frustrada por ter de abandonar o conforto da cidade e se mudar para a “roça” com as filhas formadas em bons colégios. Fernanda, por sua vez, instiga Maria a sair do seu torpor e encontrar alegria no campo. Fernanda é o álter ego de Júlia que, nas suas crônicas já comentadas, revela grande interesse pelo meio rural brasileiro e por um desenvolvimento que contemple a agropecuária.
Nas cartas trocadas entre Fernanda, Maria e as filhas dessa, Júlia revela suas ideias sobre o desenvolvimento da economia rural. Ela estimula a criação de aves e ensina como cuidá-las. Para Fernanda, esse tipo de desenvolvimento passa pela proteção de mananciais e de florestas, mesmo até pela restauração de ecossistemas (não com essas palavras). Seus ensinamentos sobre como construir uma estrada deveriam ser ouvidos pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) e pelos Departamentos de Estradas de Rodagem dos estados brasileiros. São ensinamentos para respeitar o escoamento de águas pluviais e fluviais. Atualmente, a economia dos governos gera estradas que engargalam cursos d’água e se desgastam rapidamente.
Fernanda é uma ardorosa defensora das florestas, da fruticultura, das flores e da autonomia para uma unidade de produção rural. Além do mais, ela valoriza a importância do campo para a cidade. Eu gostaria de encontrar outros livros de ficção que expressem a esquecida tradição de um desenvolvimento em moldes fisiocratas no Brasil, além dos escritos sociológicos e políticos.

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