Uma escritora na Belle Époque brasileira
*Adélia Noronha - Atualizado em 09/08/2018 19:03
Que o Brasil está intrinsecamente ligado à Europa não há como duvidar. Evidentemente não na condição de país com o mesmo nível de uma Dinamarca, por exemplo, mas como um país periférico, uma espécie de país europeu fora da Europa, um país europeu mestiço. O que acontece aqui não é mero reflexo da história europeia. Os países colonizados pela Europa ganharam dinâmica própria na economia, sociedade, politica e cultura. Mas eles não podem ser dissociados da Europa e, hoje, da globalização promovida pelo mundo europeu.
A Belle Époque foi um dos dois momentos mais felizes do mundo ocidental. O outro foi o século XVI. Depois de 1870, a Europa mergulhou numa euforia econômica e cultural que levou a burguesia a pensar que o mundo marcharia para a felicidade. Mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, abalou esse sonho. Claro que a felicidade existia só para quem estava no topo da pirâmide social. Se o rico está feliz, tem-se a impressão de que o pobre também está.
No Brasil, a Belle Époque coincidiu com o fim da monarquia e o início de República. No período entre 1900 e 1922, o parnasianismo e o simbolismo dominavam a literatura brasileira. Alguns ensaios de modernização cultural já se manifestavam. Lembremos do romance “Canaã”, de Graça Aranha, publicado em 1902, e da exposição de Lasar Segall, em 1913, entre outros exemplos.
Júlia Lopes de Almeida viveu na Belle Époque brasileira. Ela nasceu no Rio de Janeiro, em 1862. Não era comum uma mulher tornar-se escritora. A trajetória de vida de uma mulher costumava ser pautada por uma educação frívola e inferior a dos homens. Ela era preparada para o casamento e para cuidar do marido e dos filhos. Júlia teve sorte: seu pai lhe deu apoio para escrever. Ela teve mais sorte ainda ao se casar com o poeta português Francisco Filinto de Almeida, que admirava e apoiava a esposa. Com o marido, Júlia escreveu o romance “A casa verde”.
Júlia escreveu vários romances, entre eles “Memórias de Marta” (1899), “A família Medeiros” (1892), “A viúva Simões” (1897), “A falência” (1901), “A intrusa” (1908), “Cruel amor” (1911), “Correio da roça” (1913), “A Silverinha” (1914), “Pássaro tonto” (1934) e “O final” (s/d). Escreveu também literatura infantil e textos dedicados às mulheres, como fará Clarice Lispector mais tarde. Além de romances, Júlia deixou contos, teatro e crônicas. Os pesquisadores AngeladiStasio, Anna Faedrich e Marcus Venicio Ribeiro selecionaram crônicas que Júlia publicou em “O Paiz”, importante jornal carioca, e as reuniram no livro “Dois dedos de prosa: o cotidiano carioca por Júlia Lopes de Almeida” (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2016).
Não havia computador na época dela. Creio que máquina de datilografar já existia, mas Júlia redigia suas crônicas à mão. O texto, então, era linotipado e impresso. Suas crônicas eram publicadas na primeira página do jornal, o que mostra a importância da escritora. Júlia era antiescravista e republicana, embora gozasse de uma vida abastada na sociedade carioca. Casal e filhos moravam em Santa Tereza, bairro muito abordado nas crônicas, tanto no que toca a sua beleza quanto nos seus problemas. Logo abaixo, ficava o Largo da Carioca e o Mosteiro de Santo Antônio, bastante frequentes nas crônicas também.
Existe um traço de elitismo na autora, o que é perfeitamente perdoável diante dos pleitos que ela defendia. Júlia gostaria que os pobres andassem bem vestidos e que suas casas fossem bonitas. Ela achava que o governo podia fazer essa exigência a eles ou ajudá-los a se apresentarem melhor. Por outro lado, suas crônicas eram uma espécie de tribuna que fazia cobranças ao Distrito Federal (Rio de Janeiro) e ao governo Federal. O governo estadual estava sediado em Niterói. Não nos esqueçamos de que a sede da República ficou no Rio de Janeiro até ser transferida para Brasília em 1960.
Júlia gostava de plantas, no geral, e de flores no particular. Ela amava as florestas brasileiras. Em suas palavras, “as árvores só falam aos que têm no peito poesia em vez de ambição... as árvores só falam a quem as faz falar”. Ela pugnava pela arborização pública da cidade, assim como reclamava da privatização de coleções de flores e orquídeas. Escreveu ela, mais de uma vez, ser mais fácil conhecer as orquídeas brasileiras em exposições na Inglaterra que no Brasil. Aliás, ela comparava com frequência o Brasil a países europeus, algo que persiste ainda hoje.
As críticas que ela fazia à polícia do Rio de Janeiro são bem atuais. Em vez de assustar a população, escrevia ela, a polícia devia protegê-la. Júlia já reclamava dos automóveis naquela época. E observemos que eram veículos ainda elementares se comparados aos de hoje. No entanto, Júlia reclamava dos motoristas que não respeitavam pedestres. Do conjunto, denunciava a poluição do ar e do som causada pelos autos.
Júlia gostava de caminhadas pelos arredores do Rio de Janeiro, não sei se acompanhada ou só. Ele ficou encantada com a modernização de Niterói. Numa de suas crônicas, ela fala da dificuldade que teve de localizar uma rua do que já era subúrbio da cidade. Daí sua insistência em tabelas com informações em estações de trem para orientar as pessoas. E falando em trem, ela não poupa críticas aos acidentes com trens da Central, empresa que, segundo ela, prestava serviços sofríveis à população. O espírito público da escritora é acentuado. Ela reclama a criação de hospitais, notadamente para tuberculosos (tísicos, como eram então chamados), e de escolas. Numa de suas crônicas, ela reclama das dificuldades que as professoras tinham para chegar a Jacarepaguá a fim de trabalhar, na época, zona rural.
Suas crônicas são longas e não têm título específico. Apenas a coluna recebia o título de “Dois dedos de prosa”. A primeira crônica do livro data de 25 de agosto de 1908, ano da morte de Machado de Assis, nome não mencionado por ela em nenhuma das crônicas reunidas. A última data de 13 de agosto de 2012. Muita coisa aconteceu nos quatro anos cobertos por seus escritos.
Uma parte importante das crônicas referia-se a escritores, encenações teatrais e concertos musicais. Os nomes mencionados por ela são pouco conhecidos hoje. João do Rio (que ela admirava), Medeiros e Albuquerque, Alberto Nepomuceno, Eliseu Visconti, Auta de Souza, Julia Cortines, Olegário Mariano são alguns nomes que chegaram até nós. Os outros tantos foram soterrados pelo Movimento Modernista.
Júlia viveu num Rio de Janeiro mais belo e tranquilo que o atual. Mas os problemas que hoje conhecemos já colocavam a cabeça de fora no seu tempo. A postura pública da escritora é bastante incomum para a época. Seu espírito quanto à esfera pública era muito arrojado e corajoso. Significativa é a defesa da emancipação feminina. A seu ver, as mulheres deviam usufruir da cidade como os homens, caminhando pelas ruas. Moças pobres deviam ter segurança à noite para frequentarem escolas. Aquelas que trabalhavam no Mercado das Flores, à vista de todos, deviam usar uniformes para “ir acostumando o povo a considerar as moças que trabalham com respeito, visto que não seria permitido a nenhum rapaz menos educado ofender com os seus ditos ou a sua insistência as vendedoras mais ou menos gentis.” A escritora adianta já sua condenação ao que hoje muito usualmente chamamos de assédio.
E a linguagem? Com destemor, ela compara os morros de Santo Antônio e do Castelo a seios femininos, escrevendo com todas as letras a palavra peito referindo-se a seio. Também é saboroso reencontrar palavras em franco desuso empregadas em suas crônicas, tais como acoroçoar, estrídulo, variegado, vilegiatura, alacridade, cobarde, esperdiçar, arreliar, anquilosar, negregado, casmurrice, confranger, mafarrico, profligar, lapidário, esbrugar, redoiça. Apenas mafarrico e redoiça meu computador recusou.
Júlia Lopes de Almeida morreu em 1934 na cidade em que nasceu.

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