Wander Piroli, o Hemingway esquecido das Minas Gerais
- Atualizado em 02/08/2018 18:54
Wander Piroli é mais um nome na extensa lista de escritores que o Brasil se esmerou em esquecer. Um dos símbolos do que ficou conhecido como boom dos contistas nos anos 1970, Piroli era, em tudo, um simples — não confundir com simplista. Mestre em criar diálogos secos, diretos e cheios de sensibilidade, dizia preferir a vida à literatura, mas escreveu sem parar. Gostava de cachaça Claudionor, cigarro de palha, pescaria e amizade. Agora, doze anos depois de sua morte, o livro “Wander Piroli — Uma Manada de Búfalos Dentro do Peito”, do jornalista, poeta e escritor Fabrício Marques, vem tentar reparar esse esquecimento.
Mineiro até o último fio de cabelo, Piroli nasceu em 1931, em Belo Horizonte, cenário principal de tudo o que produziu em crônicas, reportagens, contos, poesia e romance ao longo da vida. Costumava dizer que o bairro operário em que cresceu até os 27 anos, Lagoinha, vizinho indesejado do centro rico da capital mineira, estava em tudo. “A minha visão de mundo é a visão da Lagoinha”, escreveu uma vez. “Uma visão primária, substantiva da coisa. Uma visão operária e marginal”. Seus textos eram tomados por personagens vivendo vidas ordinárias, comuns. Eram os trabalhadores de sol a sol, os malandros, as prostitutas e os “náufragos da noite”, como caracterizava os tipos com que conviveu na infância e juventude.
Na curta biografia assinada por Marques, também mineiro, o escritor Joca Terron avalia a importância de Piroli para a literatura brasileira: pouca ou nenhuma em termos oficiais, mas incalculável em termos de qualidade. “Mas no Brasil, país aculturado e sem vergonha, o que interessa é a cultura não oficial, e Wander Piroli está no centro dela (que é margem)”, diz Terron. Outro admirador do autor mineiro é Marçal Aquino: “Seus contos eram relatos diretos e contundentes sobre gente de carne e osso, tinham sempre uma carga humana, sem nunca esquecer de olhar ao redor”.
Da biografia, publicada pela Conceito Editorial como parte da série Beagá Perfis, que trata de personagens belo-horizontinos, fica a imagem de um incansável jornalista e ótimo escritor que caiu num anonimato injusto. Ao lado dele, na geração de 1970, estavam nomes como Sérgio Sant’Anna, Antônio Torres e Ignácio de Loyola Brandão, bem conhecidos hoje em dia, mas também de outros que, com o tempo, ficaram mais esquecidos, como Manoel Lobato, Luiz Vilela e João Antônio. Cada caso é um caso, mas confluem coisas semelhantes entre a maioria deles para o relativo esquecimento. Por exemplo, a visão de mercado de que o conto seria um gênero menor, e a necessidade dos autores de dividir a escrita com outras funções, como o jornalismo.
Para Piroli, Marques conta na biografia, o trabalho em redações jornalísticas apareceu como uma forma de sustentar a família, mas se tornou uma das partes principais de sua vida. Trabalhou em dezenas de publicações mineiras entre jornais alternativos e da grande imprensa, como Estado de Minas, Suplemento Literário, Última Hora, O Sol e Binômio. No meio da lida do jornal e da criação de quatro filhos, publicou seu primeiro livro “A Mãe e o Filho da Mãe”, em 1966. Começou escrevendo quase que por interesse econômico: ainda na casa dos 20 anos, inscrevia contos em concursos públicos e sempre acabava levando um prêmio para casa. Muito dessa produção, ainda na década de 1950, integraria seu livro de estreia, talvez o mais importante de sua carreira.
Só quase dez anos depois, o escritor publicaria “O Menino e o Pinto do Menino”, em 1975 e “Os Rios Morrem de Sede”, em 1976. Talvez seus trabalhos mais conhecidos, ambos infanto-juvenis, viraram sucesso de público ao propor, pela primeira vez, uma espécie de realismo para crianças. Piroli abriu mão das bruxas e duendes para falar às crianças da vida como ela é. “O [escritor] Otto Lara Resende, em uma crônica na TV Globo durante o programa Fantástico, falou sobre ‘O Menino e o Pinto do Menino’ e aí as vendas estouraram”, conta Marques. Em 2001, os dois livros estavam na 32ª edição com 150.000 exemplares vendidos. Em vida, Wander ainda publicou cerca de sete títulos, entre infantis, de crônica e contos, como “A Máquina de Fazer Amor” e “Minha Bela Putana”.
“Qual a importância da obra de Piroli para a literatura brasileira?”, pergunta Marques ao crítico literário Antônio Hohlfeldt: “Acho que no conto foi algo de circunstância, embora sobreviva: esta linguagem jornalística, dura como um soco, mas, ao mesmo tempo, a intensa humanidade dos personagens. Na literatura infantil, maior: quebrar os velhos cânones de uma literatura bem-comportada e capaz de servir modelos bem-comportados. Wander introduziu no texto para crianças um modo de narrar até então absolutamente inexistente”. Quando morreu, descobriu-se que Piroli tinha mais 18 livros inéditos. Hoje, os direitos autorais são todos da editora Sesi-SP, que já reeditou alguns títulos, como “O Menino e o Pinto do Menino” e “A Mãe e o Filho da Mãe”.
Na biografia, por trás do retrato do escritor está também a história de um país que lutava contra a ditadura militar com as armas que dispunha, e que vivia, no pouco profissionalismo editorial — seja nos jornais, seja em editoras —, um momento de criatividade mais descontraída. Piroli, segundo os entrevistados por Marques, queria aproximar a produção intelectual da vida comum, levando tudo com um despojamento único. Nas redações em que foi editor, não faltava um garrafão de pinga debaixo de sua mesa e, em uma delas, até um pato circulava livremente entre as máquinas de escrever. Como chefe, aconselhava que se esquecesse os padrões jornalísticos: queria ler textos que contassem como as coisas realmente tinham acontecido, sem leads ou subleads. Era inimigo da objetividade e compunha títulos malucos e saborosos, como “Cada brasileiro nasce devendo sete salários mínimos”.
Ao escritor, que tinha uma relação descompromissada com a literatura — “Pescar é mais importante que escrever. Escrever faz mal para a saúde. Não conheço uma só pessoa que se tenha tornado melhor com a literatura; geralmente, piora. Há poetas, porém, que dizem que fazer poesia ‘é minha vida, é o ar que respiro’. Respiram mal e têm uma péssima vida” —, Marques acredita que também faltou sorte: “a editora Cosac Naify, por exemplo, tinha comprado todos os direitos dele, mas, logo em seguida, acabou”. Um tipo meio tímido, mas alegre, vivendo sem chamar atenção, corpulento, camisa sempre aberta no peito peludo, Piroli foi visto por seus contemporâneos como um Hemingway brasileiro, seja pelo modo de viver, seja pelo estilo seco dos textos. Exagero? Faz-se necessário ler antes de dizer. (A.N.)

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