* Arthur Soffiati
- Atualizado em 26/07/2018 18:15
Edgar Morin nasceu em 1921 no seio de uma família marrana. Os marranos são judeus convertidos ao cristianismo, mas que continuam a praticar sua religião original em segredo. Edgar nasceu com o sobrenome de Nahoum, ingressou no Partido Comunista Francês e lutou na resistência ao nazismo. Desde cedo, suspeitou das verdades indiscutíveis, revelando inquietação intelectual. Agradeceu à sorte por não precisar matar ninguém durante a guerra. Quando ela terminou, Morin partiu para a Alemanha derrotada a fim de conhecer melhor a realidade do país. O PCF condenou o nazismo e exaltou o comunismo russo. Morin relativizou. Procurou ouvir todos os lados e publicou, em 1948, “O ano zero da Alemanha”, seu primeiro livro. Embora concluísse que o melhor caminho para a Alemanha era o comunismo, o partido a que era filiado não gostou muito do membro que tendia a pensar por conta própria. Hoje, quem quiser conhecer a complexidade da Alemanha ao fim da guerra deve ler seu livro, um excelente estudo de sociologia do imediato.
Depois, por conta própria, ele pesquisou várias ciências para escrever “O homem e a morte”, de 1951. Despontava o intelectual interdisciplinar autodidata que evoluiria para a transdisciplinaridade. Conseguindo emprego no Centre National de la Recherche Scientifique para estudar os meios de comunicação de massa, tão criticados pelos filósofos da Escola de Frankfurt, ele escreveu livros sobre cinema e artistas. Desligou-se do partido comunista por se posicionar contra o stalinismo e assumiu a postura de intelectual de esquerda independente. No fim dos anos 1950, ele publicou sua autocrítica. Curioso que os marxistas ainda hoje só levem em conta o que o pensador escreveu antes de se tornar independente.
Na década de 1960, sua curiosidade insaciável levou-o a se interessar pelas pesquisas de ponta nas ciências naturais e sociais. Enquanto assumia posições fortes e independentes contra a Guerra da Argélia, ele estudava física e biologia. Seu pensamento complexo estava em construção quando ele se associou ao jovem cientista Massimo Piattelli Palmarini na coordenação de um seminário no Centro Royaumont para uma Ciência do Homem, do qual resultaram três livros. Mas seu interesse pelas ciências sociais continuou. Em 1968, suas análises dos movimentos de maio na França revelaram como ele procedia: em lugar da dialética, ele recorria à dialógica: o contrário de uma verdade não é necessariamente uma mentira; pode ser outra verdade.
Descobri o pensador em 1972, quando ele veio ao Brasil para fazer conferências. Guardo dele uma iluminada entrevista concedida ao “Jornal do Brasil”, em que expunha seu pensamento e falava sobre seu mais recente livro — “O enigma do homem” —, que só foi traduzido no Brasil em 1975. Imediatamente, li-o de um só fôlego e fui tomado de dupla sensação: por um lado, fiquei maravilhado com a sua cultura geral, articulando vários conhecimentos de forma complexa. Por outro lado, não entendi quase nada. Tanto que reli o livro várias vezes. O desastre maior estava por vir. Adotei o livro nas minhas turmas de universidade. O desentendimento foi geral.
“O enigma do homem” era o embrião de “O método”, sua obra máxima, em seis volumes. Morin formula, de forma independente e estonteante, sua epistemologia. Em “A natureza da natureza”, primeiro volume da obra, ele analisa os sistemas físicos e químicos. No segundo — “A vida da vida” —, ele se debruça sobre os organismos, transitando do micro ao macro. Daí em diante, sua sociologia passará a ser uma ecossociologia. Em “O conhecimento do conhecimento”, terceiro volume da obra, ele examina o processo de conhecimento dos humanos e de outros seres vivos, sempre se valendo do anel recursivo: ordem-desordem-interação-organização. No volume 4 — “As ideias” —, ele mostra que o pensamento humano é uma emergência de seu cérebro hipercomplexo. Enquanto o cérebro é um órgão, a mente é uma emergência dele. Há outras emergências, como os sentimentos e a razão. Aliás, na sua epistemologia anticartesiana, ele defende junções entre natureza e cultura, emoção e razão, sempre valendo-se do anel recursivo. Assim, natureza-cultura-natureza. Está superada a distinção mecanicista de causa e consequência, pois a consequência é também causa. Os processos vitais não são mais lineares e sim circulares.
Em “A humanidade da humanidade”, Morin enfatiza o erro de se subestimar o erro. Ele valoriza o erro por seu caráter criativo. O ser humano não é mais o sistema simples concebido por Descartes. Em lugar das separações cartesianas, ele vê uniões. Ele investe contra a visão insular do humano, mostrando que uma nuvem mental obscureceu a ligação de homem-natureza. Agora, a nuvem se dissipou, mostrando que o homem é uma península ligada à natureza.
No último volume da obra — “Ética” —, ele deixa bem claro seu ateísmo espiritualista. Aqueles que têm intimidade com sua obra concluem que não existe ateu mais crente que Morin, sem que seu lado místico comprometa sua obra. Ele desenvolve uma autoética, já que as éticas de grupo se cristalizaram. Morin está sempre à procura do inacabamento final. Quem lê um livro de Morin, lê todos os seus livros e lê apenas um.
Li os seis volumes de “O método” à medida em que foram publicados. Eles eram editados em Portugal até que a Editora Sulina assumiu o encargo de publicá-los no Brasil. Em 2017, os seis volumes foram reunidos numa caixa. Mas Morin escreveu e publicou muito mais. Seus debates sobre a estrutura e a dinâmica do universo, da vida e da cultura são arrebatadores. Eles são travados com especialistas. Os argumentos estonteantes de Morin sempre iluminam o conhecimento científico. Tenho a impressão de que ele é capaz de discorrer sobre qualquer assunto de improviso.
Seus interesses conduziram-no à educação. Seus livros sobre essa área têm sido muito usados por educadores sem o conhecimento prévio de sua epistemologia. O entendimento acaba empobrecido. Sua proposta de reforma universitária da França foi repudiada pelos acadêmicos por ele condenar as especializações. Ela contou com mais adeptos nas ex-colônias europeias. Ele mesmo aceita convites para fazer palestras no Brasil, nos diversos países hispano-americanos, africanos e asiáticos.
Morin acaba de completar 97 anos no dia 8 de julho de 2018. Mesmo não mostrando mais o vigor da meia idade, ele continua lúcido e produtivo. O amigo Hélio Coelho Filho encontrou-o casualmente em Búzios e o convidou para um jantar. Na sua simplicidade, ele aceitou. Hélio é meu sobrinho por afinidade, muito querido. Graças a ele, vivi uma noite mágica com o grande pensador francês e sua mulher marroquina em 2014. Ele autografou dois livros para mim. Num deles, Morin escreve estar surpreso por encontrar uma pessoa que conhecia sua obra em lugar tão distante, o que muito me lisonjeou. Ele anunciava, naquele ano, que encerraria sua carreira de escritor. Só a morte pode paralisar a sua mente inquieta. Em 2016, ele foi convidado a proferir uma série de palestras sobre estética a partir de anotações que fez para escrever o sétimo volume de “O método”, ele que se comprometeu a escrever apenas cinco. “Sobre estética” (Rio de Janeiro: Pró-Saber, 2017) foi lançado depois de sua promessa de encerrar carreira.
Quem conversa com Morin percebe que seu corpo envelheceu, mas sua mente é intensamente jovem. Ele não se refugia no passado. Não cristaliza posições. Está sempre aberto ao mundo. Em debates, ele apresenta posições muito lúcidas sobre globalização, ecologia, Estado Islâmico, os 50 anos dos movimentos de 1968 e outros temas mais. Seus admiradores e estudiosos de sua obra estão sempre aquém do mestre. Morin não viverá muito mais. Não chorarei a sua morte por entender, como ele, que vida e morte se complementam. Ele gosta de citar Heráclito: “viver de morte e morrer de vida”. Seu pensamento continuará vivo, embora os expoentes da filosofia no século XXI o ignorem. Entendo. Edgar Morin incomoda como o grande pensador de um mundo globalizado pelo ocidente.