Crítica de cinema - O lado negro da força
Edgar Vianna de Andrade 25/06/2018 18:59 - Atualizado em 26/06/2018 18:39
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(Hereditário) -
Numa primeira leitura, “Hereditário” é um filme de terror. A morte da matriarca leva o seu corpo para a sepultura, mas seu espírito fica vagando no seio da sua família. Ela puxa a neta para o reino das trevas numa morte violenta, de certa maneira prevista pela própria menina ao cortar a cabeça de um pombo morto e desenhá-la num caderno. Aos poucos, a filha e o neto vão sendo possuídos por entes diabólicos e malignos. Nessa leitura, o sobrenatural assume o comando, causando medo no espectador. Ari Aster, seu diretor, não apela para os clichês dos filmes de terror, como susto provocado por aparições súbitas e mortes bizarras. Ele consegue o efeito de terror com os movimentos da câmara, com o ambiente sombrio e com a música rascante.
Numa segunda leitura, o filme pode (e talvez deva) ser entendido como um drama psicológico profundo. O espírito dos mortos não assombra objetivamente, mas atormenta os vivos. A avó morre de morte natural. A neta querida pela matriarca morre violentamente num acidente de automóvel. Na mãe, afloram profundos sentimentos de culpa. Ela quis abortar o filho, mas não conseguiu. A revelação choca o rapaz. Sua relação com a matriarca morta era conflituosa. Ela amava a filha morta e não se conforma com a perda. Então, Annie Graham (Toni Colllette), em ótimo desempenho, começa a desenvolver distúrbios psicológicos graves, tais como violar sepulturas, envolver-se com uma médium e integrar-se a um grupo de magia negra. Steve Graham (Gabriel Byrne), o marido, reage aos desejos da esposa. Ele é o mais imune ao círculo descendente da Annie e do filho Peter Graham (Alex Wolff). Este sente-se culpado pela morte da irmã Charllie (Milly Shapiro), que morreu no carro que ele dirigia. Por conservar um pouco de lucidez no meio do naufrágio psicológico da família, o marido é eliminado fisicamente pela mulher e metaforicamente pelo ambiente psicótico crescente.
Mateusinho
Mateusinho
O clima sufocante do filme se acentua pelo trabalho da câmara. O cinema comercial está se esquecendo dos recursos originais que o cinema proporciona. A câmara fala e funciona como um narrador privilegiado. Ela se movimenta lentamente, com distanciamentos e aproximações, criando a ilusão de que o cenário e os personagens se movimentam. Os closes, os travellings, os desfocamentos são fundamentais para criar a atmosfera sufocante. A luz também cumpre o papel de criar expectativas de sustos que não se concretizam. As trilhas sonoras não têm merecido muita atenção atualmente. O público fica tão atento à trama que não a percebe. Por outro lado, as trilhas sonoras tornaram-se pasteurizadas. Colin Stetson usa sons graves e roucos que, ao fim, ganham caráter coral. O último filme a que assisti com a música desempenhando papel significativo foi “Os oito odiados”, de Quentin Tarantino. A trilha foi composta pelo consagrado Ennio Morricone, que ganhou um Oscar. Fiz este vaticínio e o repito para Stetson.
A crítica comparou “Hereditário” a muitos filmes do gênero. De todos os mencionados, fico apenas com dois: “O iluminado”, do genial Stanley Kubrick, de 1980, e “Assombração”, dos irmãos Pang. No primeiro, o espectador atento conclui se tratar de um drama psicológico, com um homem que mergulha numa profunda psicose. No fim, uma foto de 1919, mostra o psicótico presente antes de nascer, o que nos deixa perplexos: drama ou terror? No segundo, os irmãos cineastas devorados por Hollywood, mostram o fantasma da cultura oriental assassinada pelo ocidente.
Em nível profundíssimo, “Hereditário” mostra o lado negro do potente Estados Unidos, assim como “Corra”. Enquanto neste, há a estreia do neorracismo, naquele, é o obscurantismo profundo que existe na sociedade norte-americana. Ari Aster mostra, mais uma vez, que a renovação do cinema não necessita de grandes orçamentos e caros efeitos especiais. O talento ainda continua valendo.

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