Bruna, Roseli, Kaíque e dona Alaíde, apesar de possuírem idades diferentes, vivenciam uma realidade comum na Baixada Campista: a sensação de sair de casa e não saber que horas irá voltar. O olhar de uma jovem que trocou o Centro pela localidade do Largo do Garcia, há menos de um ano por conta do casamento, narra um cenário de emergência. Um grito de socorro de quem se sente abandonado. O clamor vem em forma de passos (muitos passos), cumprimentos e solidariedade. Aos 27 anos, a assistente administrativa Bruna Pessanha, mulher de estatura baixa, cabelos negros, olhos verdes, personalidade forte, deseja poder contribuir para a melhoria do lugar que a acolheu.
Eram 5h58 da última sexta-feira, o sol já refletia na vegetação da estrada, ao mesmo tempo em que Bruna abre o portão acompanhada do esposo. A poucos metros, um casebre de quintal extenso. A jovem grita pela amiga e vizinha, Roseli Santana. Uma senhora de 58 anos, moradora da localidade há quase 29. Acompanhada de sua filha, que está grávida, e do neto Kaíque, de 4 anos, Roseli, que é doméstica em uma residência no centro de Campos, também dá início a uma caminhada de quase dois quilômetros junto de Bruna. São quase vinte minutos até a pista principal, parada dos transportes coletivos. Durante o trajeto, as mulheres de duas gerações diferentes falam das mesmas dificuldades.
— A gente estava sem horário para ir trabalhar. Van de manhã não tem como porque eles não param e quando param está muito cheio, sem condições de entrar. A gente estava pegando o ônibus da Macaense (que passa na pista e é intermunicipal), só que é R$ 4 a passagem. Pesa pra mim, eu que pego quatro ônibus não dá. Nosso orçamento é como pobre. Então, normalmente a gente esperava para vê se vinha alguma coisa. A São Salvador passava, mas não era uma coisa certa. Um dia passava, outro não. Eles falavam que é porque estava com problema “de óleo”, sem ter óleo para sair da garagem. Aí no outro dia que a gente achava que ia vir, diziam a mesma coisa. Aí depois começou essa coisa toda e parou de vez — contou Bruna.
A “coisa toda” narrada pela assistente administrativa diz respeito às notificações das linhas de ônibus do consórcio União, que desde o ano passado apresenta problemas financeiros que desencadearam em diversas paralisações. Ainda na caminhada, dona Roseli acrescenta um desabafo à conversa. “Está muito difícil. Nós aqui somos abandonados. Não temos comércio, não temos nada perto, não temos condução para trabalhar. O lugar aqui é muito bom pra morar, por causa dos vizinhos. Mas fora isso... Meu sonho é morar em outro lugar da Baixada. Quem tem bicicleta, vem de bicicleta. E quem não tem? E quando chove? Esse anjo (referindo-se ao neto) aqui hoje está doente, passou mal à noite toda. Não temos carro. Na época da Progresso não era assim. Ele vinha e passava lá (na pracinha do Largo do Garcia). Quando entrou a São Salvador acabou. Fazer o quê? Não tem outro jeito. O pior de tudo é quando está chovendo ou com sol muito quente. Ai meu Deus que sufoco (suspiro). Saio de lá (do trabalho) 16h e chego entre 18h30 e 19h. Às vezes, eles (patrões) me trazem”, relatou.
O relógio marcou 6h34, Bruna embarcou no coletivo acompanhada das outras pessoas.
Entre ônibus e van, trajeto leva duas horas
O desembarque aconteceu, às 7h58, no ponto de ônibus do antigo parque Alzira Vargas, que hoje abriga a Cidade da Criança, na avenida 28 de Março. Para chegar ao trabalho, Bruna ainda precisa esperar por outra condução. Mesmo no Centro, a van com destino ao Ceasa só chega 27 minutos depois. A chegada ao trabalho aconteceu às 8h40, duas horas e 42 minutos depois da jovem ter saído de casa. Ainda com um sorriso, ela cumprimenta todos os trabalhadores do lugar antes de entrar na empresa.
O dia seguiu e, após o expediente, o desejo de Bruna era chegar o mais cedo possível ao ponto das vans para conseguir um lugar sentada. Às 16h40, no retorno, o ônibus se torna a primeira condução e a van a segunda. Isso porque nesse horário, não há ônibus para a pista do Largo do Garcia. Por ter sido uma sexta-feira, em menos de uma hora a jovem conseguiu uma vaga do transporte alternativo, depois de esperar em pé na fila. “Hoje (sexta-feira) foi incomum. Já cheguei há esperar duas horas. Depende do dia”. Bruna conseguiu chegar às 18h46, mas a incerteza é o sentimento que ainda está presente. Incerteza se as coisas irão melhorar. Incerteza se mesmo com a mudança nos consórcios as localidades serão atendidas. Incerteza se um dia o transporte deixará de ser o principal problema do Largo do Garcia. Incerteza se amanhã será um dia melhor.
Passageiros vão de bicicleta até ponto
Alguns moradores do Largo do Garcia e de localidades próximas precisam sair de suas casas até o ponto de ônibus de bicicleta e contam com a solidariedade de dona Alaíde Gomes, uma senhora aparentemente franzina, baixinha, de sorriso fácil, que mora sozinha à beira do asfalto e guarda as bicicletas em seu quintal.
À espera daquelas pessoas que se tornaram “seus filhos” por conta de um problema social, a senhora conta como sua casa virou abrigo para as bicicletas: “Amizade, né?! Todo mundo conhecido, precisa deixar uma moto, uma bicicleta. Eu abro o portão e deixo aberto. Era muito bom quando era a Progresso, faz muito tempo. Essa situação é uma tristeza. Os alunos, filhos de gente pobre, que não tem como pagar, gente querendo trabalhar. É muito triste. Então, eu guardo as conduções para eles”. A senhora que fala com tanta compaixão da necessidade dos seus vizinhos também tem sofrido com a falta de transporte. Ainda acompanhando a espera do ônibus na frente de sua casa, ela relata que tem pagado um carro particular pra ir ao médico e fazer compras: “As vans não param e não tem ônibus”.
Bruna ressaltou o companheirismo de Alaíde. “Essa senhorinha guarda a bicicleta de todo mundo. Ela não cobra nada. Coisas que a gente só vê no interior e é por isso que a gente não quer sair daqui”.
Dilema do transporte em debate
Nas últimas semanas, a população de Campos viveu mais um drama do transporte público. Diante de irregularidades, o consórcio União perdeu a concessão, até que os problemas sejam resolvidos. Segundo o presidente do Instituto Municipal de Trânsito e Transporte (IMTT), Renato Siqueira, a partir de amanhã, serão normalizados os ônibus para Farol, Goitacazes, Fazendinha, Tocos, Ponta Grossa, Bugalho e Imperial. E, durante a semana, haverá a retomada gradativa das demais linhas. Pesquisadores e pessoas ligadas ao assunto opinaram sobre a problemática.
Nas últimas semanas, a transição entre os consórcios gerou transtornos para a população, principalmente para moradores da Baixada Campista, que eram atendidos pela São Salvador. A empresa retirou os ônibus da rua no dia 22 de janeiro. As atividades foram retomadas no dia 7 de fevereiro e paralisadas novamente no dia 15, como permanecem desde então.
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), o sociólogo Hernán Mamani afirmou que o caos do transporte público de Campos está relacionado às expectativas das empresas sobre o poder público municipal, e não ao atual valor da passagem e à vigência e suspensão do programa Cartão Cidadão. Para ele, as firmas esperam que o governo garanta a sua rentabilidade.
— Tradicionalmente, se investe extremamente pouco na qualidade dos serviços e se condiciona a prestação dos serviços à rentabilidade, que exige ônibus cheios e regulação da quantidade de transportes para que haja passageiros suficientes. As localidades mais distantes ficam em desvantagem. O transporte de Campos se pauta em critérios extremamente antigos. Não há a menor preocupação, há muito tempo, no sentido de desestimular o transporte individual e otimizar o público, como uma forma de bem-estar urbano — analisou.
A falta de planejamento do transporte também foi um aspecto citado pelo secretário de Desenvolvimento Econômico, Felipe Quintanilha. “Campos nunca teve um transporte coletivo organizado. A Prefeitura sempre fez de qualquer maneira nas gestões passadas. Há 30, 40 anos, se não for mais. Não foi concebido um sistema a partir do atendimento das necessidades do povo. Foram implantados modelos pré-concebidos”, relatou. Quanto ao consórcio União, o secretário afirmou que há a oportunidade de as empresas se adequarem à legislação para voltarem a atuar.
Para a empresária Rosemary Araújo, proprietária da Turisguá e representante do consórcio União, o transporte público em Campos, hoje, pode ser considerado “uma vergonha”. “Eu tirei carro da rua porque os recursos de R$ 2,75 não cobrem as despesas. Cheguei a ter 280 funcionários. Hoje, tenho 130. E aí? O que a Prefeitura me responde?”, questionou. A empresária lembrou-se da licitação, iniciada em 2013, visando melhorias, como novos terminais e linhas. Segundo ela, existia uma ordem de serviço de um ano, após o processo licitatório, com o objetivo de verificar se as atividades estavam sendo cumpridas de acordo com as normas. “Não passava de uma fase experimental. Foi provado que não deu certo. Foi feita uma licitação que não foi cumprida por parte do município, que deveria tirar o transporte alternativo. Pelo contrário. Aumentou, e ainda veio o mercado de lotadas”, disse.
Proprietário da Rogil, Gilson Menezes, também presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros (Setranspas), pontuou que “o lote que aceitar vai ficar com o mesmo problema, com deficiência no serviço, porque não tem arrecadação. Então, não soluciona dessa forma. Hoje, todos os consórcios e empresas não estão atendendo as suas linhas. E ainda vão absorver outras?”.
Já o consórcio Planície informou, em nota, que “cumpre suas obrigações nas linhas atendidas pelas empresas que o integram e busca aperfeiçoar o serviço prestado à população”. O consórcio ressaltou que “aguarda comunicado oficial da Prefeitura para início da operação das linhas em questão. Um estudo está sendo feito para elaboração da grade de horários”.
Em 2009, o programa Cartão Cidadão entrou em vigência. No ano seguinte, a lei 8169 legalizou o transporte alternativo. Presidente do IMTT, Renato Siqueira, interpreta os dois momentos como contraditórios: “Se a Prefeitura toma uma medida, supostamente, de sustentabilidade ao transporte de grande capacidade, como ela legaliza um dos predadores desse sistema?”.
Para minimizar as dificuldades relacionadas ao transporte público, Renato informou que haverá mudanças. Entre elas, programadas ainda para o primeiro semestre de 2018, será implantado o sistema eletrônico de bilhetagem. A partir deste, o município terá a oportunidade de montar uma central de monitoramento para controlar os trajetos do ônibus.
Vans servem como alternativa a usuários
Em meio à instabilidade, os campistas têm sido assistidos pelas cooperativas de transporte alternativo do município. Uma destas é a Cooperativa de Transporte Alternativo e Turismo Campos (Camposcooper), responsável por cobrir a linha Campos x Farol e presidida por Rosana Moreira. Com 35 vans e cinco viagens por dia, durante este verão, os cooperados aumentaram o número de idas e vindas para dar conta da demanda de moradores e turistas.
— Os ônibus, hoje, nos acusam de acabar com o transporte deles. Mas é mentira. Eles nunca tiveram condições de levar a população de Farol, que é, em média, de 20 mil pessoas. Todos estão trabalhando até mais tarde para a população não ficar a pé. Os idosos também estão sendo levados. Há duas vagas para idosos. A gente tenta fazer o melhor possível. Sobrecarregamos todos os motoristas por causa da falta de ônibus. Agora, estamos com outra situação: em junho, vence a nossa permissão. A gente está aguardando da Prefeitura a licitação, que pedimos desde a outra gestão — contou Rosana.
O aumento da demanda também atingiu os motoristas cooperados que atuam na linha de Goitacazes. À frente da Coopergoyta, Márcio Fernandes relatou que 34 vans cumprem o itinerário. “Nós temos capacidade para carregar mais pessoas. Nós respondemos sobre esse aumento e não foi tocado para frente. O que o governo pede, a gente responde. O transporte alternativo é consolidado. Existem problemas, mas são pontuais. A cooperativa auxilia o governo a melhorar o sistema e, muitas vezes, não é ouvida. As nossas ideias e projetos são descartados”, criticou.
Ex-presidente fala sobre processo licitatório
O edital de licitação para a modernização do transporte coletivo foi publicado em Diário Oficial em fevereiro de 2013, durante a gestão da ex-prefeita Rosinha Garotinho. À época, o projeto visava a reformulação das linhas de ônibus, sem alteração do valor da passagem social, então R$ 1. Outras mudanças na concessão do serviço também foram planejadas, como a divisão dos trabalhos em três lotes, com 125 ônibus para cada empresa e todos com acessibilidade e média de três anos de fabricação. Novas linhas e terminais também estavam previstos.
À frente da então Empresa Municipal de Transporte (Emut), no período da licitação, Álvaro Oliveira explicou que a ideia era de que as linhas — curtas, médias e longas — deveriam ser equilibradas. “Por que equilibradas? Porque você pode estar em um lote com uma linha muito rentável, mas, no mesmo lote, ter outras linhas menos rentáveis. Como elas estão equilibradas, deveria haver um ponto de encontro entre eles. Por que a licitação até hoje não foi efetivada? Porque cada um que se propôs a colocar o número de ônibus tem que colocar. Basta um desequilíbrio em um lote para desequilibrar toda a licitação. Por isso que as pessoas não entendem por que, até hoje, não foi efetivado”, detalhou.
Segundo Álvaro, no período da transição do governo, as informações foram repassadas ao atual presidente. “Já que o governo se elegeu sabendo de todos os problemas, por que não foi implantado? Ele tem força política necessária para fazer o que tem que ser feito. É demorado, não é simples. Ah, falta dinheiro? Mas falta para onde? Quem tem que colocar dinheiro é o empresário, e não a Prefeitura”, pontuou.