* Por Noeli Tejera Lisbôa
- Atualizado em 01/02/2018 18:51
Quando o nazismo dominou a Europa, as universidades do continente e, em especial, as alemãs, não só não ofereceram resistência à barbárie como, com frequência, a acolheram. A cultura continuou a ser ministrada aos alunos como atividade humanizadora, embora, sabidamente, um número considerável de oficiais nazistas era amante de Wagner, Goethe e outros.
Conforme o crítico literário George Steiner, a visão de cultura como força humanizadora fica irremediavelmente abalada ao sabermos que uma pessoa podia ler Goethe ou Rilke enquanto ouvia Bach ou Schubert, à noite, e cumprir a rotina de trabalho em Auschwitz pela manhã: “A linguagem perdeu a capacidade de expressar a verdade” (de Linguagem e Silêncio).
Esse desgaste da linguagem se reproduziu em todo o mundo, seja pela sua banalização pelos meios de comunicação de massa, seja pelo uso distorcido que dela fizeram os regimes totalitários. No Brasil dos anos 1960 e 70, a Operação Limpeza (para o extermínio dos guerrilheiros do Araguaia), a Operação Bandeirantes, para o centro de tortura do exército, e outras coisas dessa ordem tornaram-se comuns.
Em decorrência do esgotamento dos sentidos, o silêncio assumiu importância como força literária, como o que questiona a própria capacidade de dizer da linguagem, como espécie de resistência a sua banalização. Esse questionamento está na gênese da escritura de Clarice Lispector.
A língua é fascista, diz Roland Barthes em A Aula. O fascismo, ele acrescenta, não é impedir de dizer — é obrigar a dizer. E a língua tem uma estrutura que nos obriga a dizer de determinado modo. Sendo o sujeito constituído pela linguagem, onde estaria o espaço de resistência, ou de transgressão? Na crítica à linguagem — esta é a resposta de Barthes. É ao professar que nenhuma linguagem é inocente, diz o pensador, que a literatura é revolucionária. É, portanto, ao fazer a crítica da linguagem que a literatura se torna escritura.
Essa passagem da escrita para a escritura é exatamente o que Clarice Lispector faz em sua obra. Por meio da transgressão das regras gramaticais de sintaxe, paragrafação e, especialmente, a partir de uma pontuação inusitada, Clarice nos leva a um estranhamento que coloca em xeque a própria estrutura da língua. E, ao questionar a linguagem, coloca em xeque também a visão do papel transformador da literatura como representação do mundo.
“(não me corrija). A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim.” Com este recado ao linotipista, em crônica publicada no Jornal do Brasil em 1968, Clarice justifica uma das principais peculiaridades de sua escrita: a pontuação. Transgredindo regras as mais ortodoxas, ela inicia um romance (Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres) com vírgula, e o acaba com dois pontos. Em Água Viva, utiliza maiúsculas no meio da frase, em locais inusitados como no uso de pronomes, altera a posição dos parágrafos, inicia parágrafos com minúsculas, interrompe parágrafos no meio da frase e da linha, sem ponto final. Em Perto do Coração Selvagem, coloca reticências em títulos. Inicia e encerra A Paixão Segundo GH com seis travessões. Enfim, rompe de forma gritante a normatização gramatical, tornando evidente a participação da pontuação na constituição do sentido.
Numa crítica contundente e, ao mesmo tempo, sensível à ideologia, cujo trabalho é a simulação de um sentido único, por meio de uma crítica à própria linguagem, lugar privilegiado de materialização desta, Clarice promove uma renovação da língua ao expandir seus espaços de movência dos sentidos até o ponto em que esta toca no real do discurso, a saber, o silêncio (entendendo o real, aqui, como o termo utilizado nos estudos psicanalíticos como um fenômeno imanente à representação e impossível de simbolizar). Desse modo, ao invés de fechar os sentidos, movimento próprio do totalitarismo e dos meios de comunicação de massa, lança-os inteiramente em aberto para o leitor, exigindo a participação deste na sua constituição. Faz aí, nesse uso inusitado da pontuação, aquilo que Barthes chama de crítica da linguagem.
Clarice promove a única possibilidade de transgressão da língua, que é a transgressão de sua própria estrutura interna, a sintaxe. Rompe, assim, com aquilo que Barthes define como o poder intimidador da estrutura linguística, desfazendo a evidência do sentido e demonstrando que todo dizer está imerso num contínuo discursivo. Promovendo a descontinuidade do discurso, ela se interrompe, indaga, se contradiz, ou seja, quebra exatamente com aquilo que seria a própria característica definidora do texto: a unidade textual. A história da humanidade, diz o psicanalista Contardo Calligaris, poderia ser vista como um longo discurso contínuo no qual nós interferimos em determinados pontos. Ou, como diz Clarice, quase ao final de Água Viva: “O que te escrevo é um ‘isto’. Não vai parar: continua”.
Nesse sentido, o trabalho sobre o real é revolucionário por si só, pois é ali, digamos, que encontramos as bordas da linguagem, e é ali, também, que encontramos o que do humano não pode ser simbolizado, que não está atravessado pela interpretação e, portanto, não sofreu ainda determinação ideológica. Esse trabalho é desenvolvido por meio da expansão dos espaços de silêncio constituintes das palavras, ou seja, do real do discurso, conforme noção formulada por Eni Orlandi em As Formas do Silêncio: “O silêncio é o real do discurso”. E, ao contrário de ser uma manifestação exitosa da escrita, é exatamente no fracasso da linguagem, como bem demonstrou Clarice, que encontramos o indizível: “O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem” (em A Paixão Segundo GH).
É ali, nas brechas da linguagem, onde deparamos com o silêncio, como expressão do indizível, que somos impelidos a um desacomodamento da nossa relação com a linguagem e, em consequência, com a nossa compreensão do mundo.