De tal forma Woody Allen construiu um mundo próprio que ele não consegue e não quer vê-lo por outro ângulo. Mesmo saindo de sua querida Nova Iorque, ele carrega seus aparelhos óticos. Foi assim com sua recente andança por Londres, Paris, Barcelona e Roma, da qual nasceram excelentes filmes. Mas ele voltou para os Estados Unidos. Flertou com o Brasil, mas logo esqueceu o flerte, embora o Brasil seja relativamente mencionado em seus filmes em palavras e músicas. O Brasil que chegou até ele.
“Roda gigante”, seu mais recente filme, não traz o melhor do seu estilo, mas não merece que o bonequinho durma no cinema. Primeiro, Allen leva às telas pessoas de verdade e não super-heróis. Estou saudoso de gente de carne e osso. Segundo, ele arranca dos artistas o talento dormente que filmes fáceis não exploram, até porque os efeitos especiais dispensam interpretações. Foi assim com a bonitinha Scarlett Johansson, que voltou a produções fáceis, e está sendo agora com Kate Winslet. Um crítico observou que Ginny, uma atriz medíocre transformada numa balconista, foi o melhor papel de Winslet até hoje no cinema. De fato, Allen arranca o melhor do artista.
Em terceiro lugar, Allen ambienta bem os roteiros, sempre originais e por ele escritos. “Roda Gigante” é um drama entre quatro pessoas. Ginny foi casada com um baterista, com quem teve um filho. Agora, vive segundas núpcias com Humpty (James Belushi), bilheteirista de um parque de diversões e viúvo com uma filha adulta. Carolina (Juno Temple) viveu com um gangster e voltou para a casa do pai, mas continua sendo procurada pelo ex-marido. Tanto Ginny como Carolina se apaixonam por Mickey (Justin Timberlake), um salva-vidas que tem pretensões a escritor. Este é um mundo típico de Allen. Desse quarteto amoroso, decorrerá o drama. A ambientação dele num contexto dos anos de 1950 convence, sobretudo com a fotografia de Vittorio Storaro, os figurinos de Suzy Benzinger e o design de Santo Loquasto.
Em quarto lugar, a seleção de canções de época contribui significativamente para o quadro. Não são as músicas preferidas de Allen, mas as que faziam sucesso nas emissoras de rádio, outra paixão do diretor. Peter Bogdanovich recheou seu “Lua de papel” (1973) com uma seleção de músicas dos anos 1930, dando-lhe uma excelente fidelidade de época. O conjunto das canções mereceu um disco. O público não costuma prestar atenção na trilha sonora. Antes mesmo que o filme ganhasse o som da fala, o som da música já estava presente. Ela é um dos elementos integrantes do cinema.
Por fim, o que é típico de Allen. Assim como Ernst Lubitsch, ele tem seu toque característico. Um deles, usado com rara inteligência em “Match Point” (2005), é o acaso. Curioso que, nas tragédias, o acaso não é levado em conta. Aqui, a vida de Carolina depende de um simples telefonema de Ginny. Com o fone na mão, já falando com o interlocutor, ela percebe, em fração de segundos, que a morte de Carol tiraria uma concorrente de uma luta já perdida. A crueldade vence mesmo assim. A outra é a presença de um personagem aparentemente errático. Cumpre esse papel o menino Richie (Jack Gore), um incendiário contumaz que não poupa nenhum combustível. É o toque de humor em meio ao drama. Aliás, Allen nunca é totalmente trágico ou dramático. Seu lado comédia está sempre presente a nos fazer rir das suas sutilezas.