As ruas na democracia do Brasil
Aluysio Abreu Barbosa 28/10/2017 17:22 - Atualizado em 01/11/2017 18:03
  • Na Paulista, 750 mil jovens pelo impeachment de Collor

    Na Paulista, 750 mil jovens pelo impeachment de Collor

  • Em 92,

    Em 92, "caras-pintadas" no Rio

  • Ulysses promulga Constituição de 1988

    Ulysses promulga Constituição de 1988

Na última quarta-feira (25), o Congresso impediu por 251 votos a 233 que o presidente Michel Temer (PMDB) e dois de seus ministros fossem investigados por organização criminosa e obstrução da Justiça. Foi menos de três meses depois dos deputados federais terem barrado outra denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) contra o presidente, por corrupção passiva. E mesmo com 81% da população brasileira favoráveis às investigações de Temer, segundo pesquisa Ibope de julho, as ruas do país que definiram em 2015 o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), simplesmente silenciaram.
— Dilma caiu, a corrupção continuou com Temer, até mostrando aspectos mais agudos. No entanto, o movimento de rua de 2015, o maior do Brasil, se calou. Creio que o cansaço venceu — observou o historiador Aristides Soffiati, professor da UFF-Campos.
Antes desse aparente “cansaço”, qual é a história dessas ruas, aparentemente contraditórias na expressão popular da relativamente recente democracia brasileira? Com o país ainda na Ditadura Militar (1964/85), uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi lançada em 1983 pelo deputado federal do PMDB do Mato Grosso Dante Oliveira (1952/2006). Tinha por objetivo restaurar a eleição direta à presidência da República, marcada para 1985. Até então, o último presidente brasileiro eleito por voto popular fora Jânio Quadros (1917/1992), em 1960.
Antes de passar à história como “Diretas Já”, seu começo foi tímido, com população, políticos de oposição e imprensa ainda testando os limites da censura de uma Ditadura já nos seus estertores. Em 31 de março de 1983, o primeiro ato público do movimento foi no pequeno município pernambucano de Abreu Lima, na zona metropolitana do Recife. Se teve apenas 100 participantes, seu grande feito foi ter sido noticiado pela imprensa de Pernambuco.
Enquanto parecia abrandar a censura, o governo militar conduzia o país a fechar 1983 com uma inflação de 283%. Com medo gradualmente perdido e bolso doído, a adesão popular maciça se daria no ano seguinte, por cidades de todas as regiões do país. No Comício da Candelária, em 10 de abril de 1984, 1 milhão de pessoas tomaram o Centro do Rio pelo direito de votar a presidente. Na última manifestação das “Diretas Já”, em 16 de abril, a passeata entre a Praça da Sé e o Vale do Anhangabaú registrou 1,5 milhão de participantes em São Paulo. Seria a maior manifestação popular do Brasil pelos 31 anos seguintes, até 2015.
Último general presidente, João Batista Figueiredo (1918/99) chamou as manifestações de “subversivas”. Do lado oposto, estavam lideranças civis de vários matizes ideológicos, que marcaram a história política nacional: Tancredo Neves (1910/85), Ulysses Guimarães (1916/92), Leonel Brizola (1922/2004), Luís Carlos Prestes (1898/1990), Miguel Arraes (1916/2005), Franco Montoro (1916/99), Mário Covas (1930/2001), Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Na realidade, quem subverteu a vontade popular foram os militares, que manobraram politicamente para esvaziar o Congresso Nacional. Em 25 de abril de 1984, a emenda das eleições diretas teve 298 votos a favor, 65 contra e três abstenções. Os 112 deputados ausentes impediram o número mínimo de votos à aprovação.
— As “Diretas” foram um movimento de massa cujo interesse era reinstituir a normalidade democrática. Considero equivocado considerá-lo de esquerda, embora atores tradicionais deste espectro político, sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte ao que vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na fisionomia do movimento de massas, inclusive pelo acúmulo de expertise em se manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX na ilegalidade ou semilegalidade. Forneceram um discurso expresso em palavras de ordem, onde a crítica da situação econômica era absolutamente oportuna — analisa o sociólogo e cientista político George Gomes Coutinho, da UFF-Campos.
Com a abstenção do PT, mas os votos de quatro de seus deputados que o partido expulsaria, Tancredo foi eleito de maneira indireta à presidência, ainda sob a égide da Constituição de 1967. Era 15 de janeiro de 1985, mas ele morreria antes de tomar posse. A Constituição Cidadã foi promulgada em 5 de outubro de 1988, por um Ulysses que bradava fazê-lo com “ódio e nojo da Ditadura”.
Todavia, a reboque de ambos, o governo José Sarney entregaria o Brasil com a hiperinflação recorde de 84,23% ao mês (março de 1990) e 4.853% ao ano (12 meses anteriores), após a esperada eleição direta a presidente de 1989. Ainda assim, as ruas brasileiras não voltariam a assumir papel protagonista na chamada “década perdida”.
Após bater Lula no segundo turno (novidade da nova Constituição), Fernando Collor de Mello assumiu a presidência dizendo que a inflação era um tigre contra o qual teria apenas uma bala em sua arma. E, mesmo com o confisco da poupança da população, disparou não só um, mas três planos econômicos longe do alvo.
Ao insucesso na economia, se somaram as denúncias feitas por Pedro Collor de Mello, de corrupção e tráfico de influência contra seu irmão presidente, evidenciada com documentos à revista Veja, em maio de 1992. Aproveitando o que hoje chama de “denuncismo” da grande mídia brasileira, assim como o espaço vazio no campo majoritário da esquerda pelo apoio dado por Brizola a Collor, o PT cristalizaria a partir dali seu domínio sobre as manifestações de rua do país, que manteria nos 21 anos seguintes, até 2013
— No Brasil, as ruas foram fundamentais para a conquista da redemocratização do país na década de 1980. Foram fundamentais para a conquista das grandes reformas inscritas na Constituição de 1988, como a reforma urbana, a reforma agrária, os direitos sociais, a defesa ambiental, dentre outros. O PT cresceu nos sindicatos e nas ruas — explica o sociólogo José Luís Vianna da Cruz, professor da Cândido Mendes e da UFF-Campos.
Sobretudo através da União Nacional dos Estudantes (UNE), presidida pelo então jovem Lindberg Farias (então filiado ao PC do B e hoje senador petista), a geração dos “caras-pintadas” foi fundamental ao impeachment de Collor. Previamente mobilizados na conquista do passe livre no transporte público e da meia-entrada nos cinemas, na reforma das leis orgânicas dos municípios a partir da Constituição de 1988, esses estudantes foram confessamente inspirados pela popular minissérie “Anos Rebeldes”, sobre a resistência dos jovens da década de 1960 à Ditadura Militar, exibida pela Rede Globo naquele ano de 1992.
Em 1º de junho foi instalada uma CPI para investigar as denúncias contra Collor. Com seu andamento e as primeiras manifestações, o presidente fez um pronunciamento em rede nacional de TV em 13 de agosto. Nele pediu que seus defensores fossem às ruas no domingo seguinte (16), usando as cores verde e amarelo. No dia marcado, os jovens que saíram às ruas das capitais brasileiras vestiram preto e pintaram o rosto da mesma cor, sinalizando luto pela corrupção do governo. No Rio, 30 mil gritaram: “Ai, ai, ai, ai, se empurrar o Collor cai”.
O movimento popular foi crescendo passo a passo com a CPI, num Congresso que, como seria depois com Dilma, se ressentia da arrogância do presidente. Em São Paulo, 750 mil jovens com o rosto pintado de verde e amarelo protestaram em 18 de setembro. Onze dias depois, com as ruas brasileiras tomadas por milhões, a Câmara Federal aprovou o primeiro impeachment de um presidente na América Latina, com 448 votos a favor, 38 contra, uma abstenção e 23 ausências.
— O “Fora Collor” mantém alguns dos aspectos das “Diretas Já”: transcende a crítica de uma contra-elite minoritária e encontra apoio e reverberação da mídia oligopolista. É dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político mencionado — explica George Coutinho.
— Experimentamos um “retorno” à democracia, em meados dos anos de 1980, no qual a ocupação das ruas foi marcada, sobretudo nas grandes cidades, por comícios e manifestações balizadas por partidos políticos, organizações e movimentos sociais de base. Este período, somado com as manifestações do início dos anos 90 tinham em comum estas marcas — compara o antropólogo José Colaço, também professor da UFF-Campos.
(Continua no próximo domingo)
  • Historiador Aristides Soffiati

    Historiador Aristides Soffiati

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