Todos os gêneros da humanidade
Aluysio Abreu Barbosa 10/09/2017 00:54 - Atualizado em 11/09/2017 13:46
“Sou homem, nada humano me é alheio”. Ainda que o homossexualismo fosse prática aceita no mundo greco-romano da Antiguidade, o poeta e dramaturgo latino Públio Terêncio (185 a.C./150 a.C.) talvez não imaginasse como, mais de dois milênios depois do seu verso, se multiplicariam as definições de gênero e sexualidade. Mas, por humanas, saberia que ninguém lhes poderia ser alheio. Caixa de ressonância do mundo de hoje, o Facebook oferece nos EUA, desde março 2014, 56 opções de identificação de gênero na montagem de cada perfil pessoal. Um ano depois, a maior ágora virtual do planeta passaria a ofertar 17 alternativas de gênero aos seus usuários do Brasil.
Renata Melila
Renata Melila / Diomarcelo Pessanha
— Aquele desenho que toda a criança faz, com pai, mãe, filho ou filha, casa e árvore, não esgota mais o conceito de família. E isso hoje acontece até com os heterossexuais. A mulher casa com um homem e leva seus filhos de uma relação anterior. Ou é o homem que leva os seus para a nova relação. O mundo mudou, ficou mais dinâmico. E o conceito de família também — exemplifica Renata Melila Duarte, 39 anos, mulher transgênero (identificada com o gênero oposto ao dado no nascimento), que há anos rompeu com o batismo de Carlos Renato. Cursando serviço social na Universo, ela trabalha há 10 anos como assessora da presidente da Associação Irmãos da Solidariedade, Fátima Castro, na assistência aos soropositivos de HIV em Campos.
O conceito de transgênero foi estabelecido em 1965, pelo psiquiatra estadunidense John F. Oliven, da Universidade de Columbia, a partir do seu trabalho referencial “Higiene Sexual e Patologia”. O debate sobre a questão saiu da medicina, psicologia, antropologia, sociologia, filosofia e direito, para entrar de vez nos lares brasileiros com a exibição de “A Força do Querer”, novela das 21h da Rede Globo — variação eletrônica dos anfiteatros de Terêncio. Na TV, a atriz homossexual cisgênero (identificada com seu gênero de nascimento) Carol Duarte vive Ivana, em conflitos com sua família ao se assumir homem trans. Na arte que imita a vida, Ivana tem como referência Tereza, nome de batismo do ator trans Tarso Brant, que interpreta a personagem e serviu de inspiração para Glória Perez abordar o tema em seu folhetim.
Curiosidade para muitos em relação a Ivana é que, mesmo sendo um transgênero masculino, ele não demonstrou ter atração por mulheres, embora já tenha se relacionado com um homem na novela. Na vida real, o jovem Átalo Willian Barreto dos Santos é um homem trans de 20 anos. Ator e estudante do curso de licenciatura de teatro do Instituto Federal Fluminense (IFF), ele deixou o nome de Larissa, mas não só se identifica, como se interessa por homens. E explica isso com serenidade e articulação:
Átalo William
Átalo William / Diomarcelo Pessanha
— Sempre ouço essa pergunta: “Como você é um transgênero masculino se não se relaciona com mulher?”. Para mim, sempre foi natural. O homem que é gay, não deixa de ser homem por isso. O transgay também não deixa de ser homem por isso. Dentro de todas as classificações possíveis, é essa que me cabe. Com o tempo a gente percebe que, mesmo trans, é homem do mesmo jeito. É essa consciência de gênero que controla o nosso corpo. No teatro, eu aprendo que a mente controla o corpo. Sempre tive afinidade com homens homossexuais. É o que eu sou. Quando criança, tinha aquela separação entre meninos e meninas. Eu ficava com as meninas, sem estar.
Em que pesem todas as discussões e polêmicas, ninguém parece discordar que o caminho seguido por Renata e Átalo, como de muitos outros transgêneros em Campos, no Brasil e no mundo, ainda é cercado de preconceito. Marginalizados, são muito poucas as oportunidades profissionais dadas pela sociedade a alguém que se identifica com o gênero oposto ao do nascimento:
— É importante dizer isso: o transexual não consegue emprego. Você não vê uma trans trabalhando num banco, numa empresa. Marginalizada, tratada sempre como cidadão de segunda classe, a maioria acaba empurrada para a prostituição. O máximo que conseguem, dentro de um emprego dito normal, é trabalhar em salão de beleza. A transexual é vista como marginal, que anda com gilete, esse tipo de coisa. Só quem conhece, quem está próximo, sabe que a coisa não é assim. Mas existe esse misticismo, que segrega. Conheço o caso de uma trans de Campos que a família não aceitava. Os amigos abandonaram. E, sem apoio, ela se suicidou. É uma coisa feudal! — denuncia Renata.
— No curso de teatro do IFF, encontrei pessoas mais abertas. Externei a eles a minha condição e senti acolhimento. Mas sei que não é sempre assim. Sem mercado de trabalho, por conta da sua identificação de gênero, muitos trans têm que recorrer à prostituição para ser o que são e conseguirem sustento. Não sou ativista. O que posso fazer é mostrar minha questão, talvez servir como referência a outros rapazes trans. É uma coisa que não pode ser inviabilizada. Não dá para encarar isso apenas de forma científica ou religiosa. As pessoas precisam enxergar que existe outra forma de ser humano. Não é doença, não me debilita, não tira minha consciência. Até ajuda a me encontrar como pessoa. Gênero e sexualidade não são a mesma coisa — diferencia Átalo.
Dentro do universo trans, tão diverso como qualquer outro nicho humano, varia também o conceito de família. Renata é casada há seis anos com o pedreiro Alan Rodrigues Muniz, de 29, com quem leva uma típica vida de casal. Ela o conheceu numa festa de rua em Itaperuna. Eles planejam adotar um filho, depois que Renata passar pela cirurgia de mudança de sexo, feita no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008:
Renata e seu marido, Alan
Renata e seu marido, Alan / Diomarcelo Pessanha
— Estou há seis meses na fila do SUS para fazer a adequação de sexo. A espera é de dois anos. É o tempo que a lei exige até a aprovação do psiquiatra e do psicólogo, que acompanham cada caso. Tomo hormônios femininos há 15 anos e, há cinco, coloquei próteses de silicone nos seios. Já dei entrada no Ministério Público para mudar minha carteira de identidade. Eu e meu marido pensamos, sim, em adotar um filho. Tanto faz se menino, ou menina. Para criação de uma criança, a base de tudo é o respeito e o amor. No tempo devido, vou esclarecer as opções: menino pode gostar de menina e menino, menina pode gostar de menino e menina. A decisão será só dele, ou dela. Qualquer que seja, eu vou apoiar como mãe.
Fazendo acompanhamento psicológico há um ano, onde sua condição de homem transgênero foi constatada, Átalo ainda não toma hormônios masculinos, nem pensa em fazer a operação de redesignação sexual, mais complicada para quem nasceu com corpo feminino. Embora não se encaixe no padrão monogâmico, mais “tradicional” de Renata, ele também pensa em ter um filho, talvez até gestá-lo:
— Penso em criar laços familiares, sim. Mas acho que casamento é uma convenção. Você precisa ter laços, ser monogâmico, dividir bens. Não sou monogâmico, como não sou promíscuo. Depende do que a outra pessoa pense de casamento. Também penso em ter um filho, mas não sei como. Mas penso em gerar, sim. Sempre tive essa coisa de perpetuação genética. Isso para mim é um sentido de paternidade, não maternidade. Para engravidar, o homem trans tem que parar de tomar hormônios. Só depois de dar à luz e, se quiser, amamentar, pode voltar a tomar hormônios. A outra forma é inseminação, ou adotar.
Átalo em busca da identidade de gênero que o reflita
Átalo em busca da identidade de gênero que o reflita / Diomarcelo Pessanha
Através de suas próprias experiências, Renata e Átalo saíram de pontos de partida diferentes. Mas em oposição às designações de gênero recebidas no nascimento, buscaram na mesma humanidade da qual falava Terêncio a resposta ao questionamento mais básico: quem sou?
— Eu nasci em um corpo, mas sei que isso não me pertencia. Minha alma é feminina. Eu sou mulher! Simples assim! — define Renata, caminhando de encontro ao testemunho de Átalo:
— Depois de refletir, cheguei à conclusão: não sou mulher! Nunca me vi. Nunca me senti. Identidade é uma coisa muito importante. É o que a gente é para o mundo. É o que somos para nós mesmos.
O mundo é sortido, Senhor”. E não é de hoje
Para quem pensa que a complexidade entre gêneros e sexualidade é “produto dos tempos modernos”, ou pós-modernos, um pouco de trabalho de pesquisa sobre o assunto pode ser surpreendente. Na Grécia antiga, cujos valores culturais foram legados ao Império Romano, havia a cultura da efebia, pela qual era visto com naturalidade o hábito de um homem mais velho tomar um mais jovem como amante. O objetivo era também prepará-lo para a vida cívica e militar. A partir da relação entre os heróis míticos Aquiles e Pátroclo, na Guerra de Tróia narrada na “Ilíada”, do poeta Homero (séc. 8 a.C.), base de toda a cultura ocidental, historiadores contemporâneos com o inglês Arnold J. Toynbee (1888/1975) observaram que: “na Grécia, o amor romântico era entre homens”.
Afresco da poeta grega Safo
Afresco da poeta grega Safo / Reprodução
Em importantes cidades estado gregas como Tebas e Esparta, as relações homossexuais eram reguladas por legislação específica. Por outro lado, foi pelo fato da poeta grega Safo (séc. 7 a.C.) ter nascido na ilha de Lesbos e dedicado parte da sua obra ao canto do amor por outras mulheres, que as homossexuais femininas passariam a ser conhecidas como lésbicas. Considerados os maiores generais e conquistadores, respectivamente, das civilizações grega e romana, Alexandre Magno (353 a.C./326 a.C.) e Júlio César (100 a.c./44 a.C.) eram conhecidos por terem amantes de ambos os sexos.
Em outras culturas, frutos de outros processos civilizatórios, as questões de gênero e sexualidade foram ainda além. Na cultura Iorubá, trazida pelos negros africanos que vieram escravizados ao Brasil, a questão do gênero se dá na forma de princípio ativo (masculino, positivo) e passivo (feminino, negativo) entre suas divindades: os orixás, que representam a dualidade da natureza. A mitologia conta que a cada orixá foi designado a regência entre pontos positivos e negativos, para manter a harmonia e o equilíbrio. Popularmente, eles passaram a ser mais conhecidos como orixás masculinos e orixás femininos, além dos chamados orixás meta-meta — expressão difundida apenas no Brasil para designar orixás que tendem a ficar um período na regência do lado ativo, masculino, e em outro período na regência do lado passivo, feminino.
O candomblé apresenta uma grande tolerância à diversidade, como explicou Reginaldo Prandi, professor da USP especializado nessa religião. “O candomblé é calcado na diversidade, ou seja, considera que nós todos não temos a mesma origem: cada um vem de um lugar, da terra, do trovão, do mar, etc. Cada um vem de um orixá que comanda uma parte da natureza. A primeira base do candomblé é a diversidade.” Essa base na diversidade dá o respaldo para que o candomblé lide melhor com a homossexualidade.
Da ponte entre África e Brasil para o Oriente Médio, há um dado que pouca gente parece saber: desde 2008, a teocracia islâmica do Irã é o segundo país do mundo, atrás apenas da Tailândia, em número de operações de troca de sexo. E todas são bancadas pelo estado. Embora o homossexualismo seja punido com a morte naquele país fundamentalista, a partir de uma fatwa (opinião de um clérigo, que tem valor de lei) dada em 1980 pelo Ayatollah Khomeini (1902/89), líder da Revolução Iraniana (1979), foram reconhecidas pessoas do intersexo (que nascem com genitálias ambíguas). Posteriormente, a partir de 2001, os transgêneros puderam passar abertamente pelo mesmo processo.
Representação de Bahuchara Mata
Representação de Bahuchara Mata / Reprodução
Embora islâmico, o Irã foi influenciado pela cultura da Ásia Meridional, onde a figura das hijras, o terceiro gênero, é reconhecida e protegida por lei na Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh. Embora as hijras estejam presentes também no islamismo, suas bases estão no hinduísmo. Deusa desta religião politeísta e antiquíssima, Bahuchara Mata é a padroeira da comunidade hijra. O mito narra que um rei não teve filhos e decidiu orar à deusa para que ela lhe concedesse uma criança. O pedido foi atendido, mas o filho, príncipe Jetho, era impotente. A deusa então apareceu a Jetho em um sonho e ordenou que ele cortasse seus genitais, passasse a usar roupas femininas e se tornasse seu servo. Desde então, Bahuchara identifica homens impotentes e ordena o mesmo. Caso se recusem a obedecer, a deusa os amaldiçoa para que nasçam homens impotentes pelas próximas sete reencarnações.
As hijras são identificadas com os eunucos, homens castrados que serviam às cortes da Antiguidade e Idade Média, geralmente usados na guarda dos haréns dos governantes. Curiosamente, uma das seis peças de Terêncio que sobreviveram até nossos dias é a comédia intitulada “O Eunuco”. Como vaticinou o poeta brasileiro Manoel de Barros (1916/2014): “O mundo é sortido, Senhor”. E não é de hoje.

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