Aparício Torres
28/09/2017 18:43 - Atualizado em 02/10/2017 13:57
Voltei à arte egípcia depois de muitos anos. O livro que li sobre ela não é lá essas coisas. É uma simples obra de divulgação de elementos básicos. “Arte egípcia”, de Élie Faure e Victoria Charles (São Paulo: Folha de São Paulo, 2017), tem um texto muito divagante. As ilustrações poderiam ser mais bem escolhidas. Mas, vale para uma pessoa que só tem rudimentos de arte visual e que está afastado dela há tempo. Na verdade, a leitura me levou a reflexões. Por aproximadamente três mil anos, a arte egípcia manteve sua identidade. Sei que ocorreram mudanças ao longo de tão extenso tempo. Para o leigo, todavia, parece que a arte do novo império mantém os traços do antigo império.
A arte egípcia guarda muito da arte do neolítico. Ela é minimalista por fora. Tanto na arquitetura, quanto na escultura e na pintura suas linhas tendem ao geometrismo. Dentro, contudo, principalmente na pintura, ela é muito decorativa. A mim, ela passa uma sensação de estabilidade e de busca pela eternidade. É uma arte feita para atravessar os tempos. E, de fato, ela chegou aos dias de hoje. É uma arte pesada, maciça e impessoal.
Quais os nomes dos artistas? Não importa. O verdadeiro nome deles é a civilização egípcia. O artista é apenas um servidor dela. O indivíduo não conta. Ele serve à arte. Salto para a China e Japão e encontro também arquétipos e padrões duradouros. Mas a arte das antigas civilizações do extremo oriente é leve e sutil.
Quanto ao ocidente a partir do século XV, quando começou a expansão capitalista da Europa, em 600 anos, a arte sofreu tantas mudanças que um egípcio pensaria estar diante de muitas civilizações diferentes. Fernanda Young escreveu um romance intitulado “Vergonha dos pés” (Rio de Janeiro: Objetiva, 1996). Nele, Ana, a personagem principal, é uma mulher alta, mas com pequenos pés, como se eles não pertencessem àquele corpo. A autora descreve uma escultura grega de um homem com pés sólidos e proporcionais ao corpo. Entendi que os pequenos pés de Ana e os grandes pés da estátua expressavam a estabilidade da civilização helênica e a fluidez do mundo ocidental. Escrevi uma carta à autora, fazendo esta observação sem esperar resposta. Mas ela me respondeu dizendo que não havia pretendido qualquer metáfora na comparação. E gostou da minha observação.
Pés gregos perto de pés egípcios são como os pés ocidentais contemporâneos perto dos pés da antiguidade ocidental. Para o historiador francês Fernand Braudel, o conceito de estrutura não se aplica apenas à economia e à política, mas também à cultura. Uma estrutura tem longa duração, como o capitalismo, o estado moderno e o figurativismo da arte ocidental. Ele mostra que a arte figurativa ocidental se estendeu da Idade Média ao século XIX, quando se dissolveu progressivamente a partir do Impressionismo. De fato, nos diversos movimentos da arte moderna, o figurativismo é facultativo. A fotografia o substituiu, juntamente com os quadrinhos, a fotonovela e o cinema.
A arte egípcia é figurativa do princípio ao fim. A longevidade de sua identidade marcou mais o ocidente que a arte das civilizações do Oriente Médio. Tanto a arte egípcia quanto a do Oriente Médio tem em comum a frontalidade. Na pintura, a cabeça é representada de perfil e os olhos de frente para serem vistos em sua extensão. Picasso trabalharia assim no século XX, na sua fase cubista, mas com intenção completamente diferente. O tórax é mostrado de frente, posição em que ele é mais extenso. Pernas e pés são representados de perfil, pois são mais expressivos nessa posição. A distorção não decorre da incapacidade do artista. Ela é proposital.
Creio que a arte egípcia impressionou mais o ocidente que as culturas do Oriente Médio, por ter existido por mais tempo. O Oriente Médio sofreu muitas invasões e conheceu muita movimentação cultural. O Egito manteve-se mais protegido de invasões e de influência culturais, por mais que elas tenham penetrado no vale do Nilo.
O ocidente contemporâneo absorveu o espírito egípcio mais que qualquer outro, mas o tratou de modo superficial, como trata toda influência cultural. O ocidente consome, vende e esquece. A civilização egípcia não tem sido aproveitada na literatura ocidental, com raras exceções, como é o caso de “Noites antigas” do escritor dos Estados Unidos Norman Mailer (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983).
O cinema, a partir de “A múmia”, dirigido pelo grande mestre da fotografia Karl Freund em 1932, foi invadido por filmes sobre o Egito Antigo. Seria trabalhoso fazer um levantamento sistemático deles. E antes de 1932? Meus levantamentos identificaram cinco. “The haunted curiosity shop” (“A loja de curiosidades assombrada”), de R.W. Paul, datado de 1901; “From Cairo to the pyramids” (Do Cairo às pirâmides), um documentário produzido nos Estúdios Pathé, em 1905. Ambos são filmes curtos. Em 1917, J. Gordon Edwards dirigiu “Cleópatra”, filme que imortalizou Theda Bara, a primeira mulher vamp do cinema. Dele, restou apenas um fragmento de alguns segundos.
A primeira produção cinematográfica longa sobre o antigo Egito foi “Os olhos da múmia”, do genial Ernst Lubitsch. Ele contou com a sensual Pola Negri e com o consagrado Emil Jannings, ganhador do primeiro Oscar de melhor ator, em 1928. “Os olhos da múmia” foi lançado em 1918. Em 1922, o mesmo diretor, candidatando-se ao cinema norte-americano, dirige, na Alemanha, a primeira superprodução inteiramente retratando o Egito antigo. É “A esposa do faraó”, de 1922. Mais uma vez, Emil Jannings ocupa o papel principal.
Em 1923, Cecil B. DeMille dirige sua primeira versão de “Os Dez Mandamentos”. O filme começa no Egito, valendo-se de monumentais cenários, muitos figurantes e de trabalhosos figurinos. Com efeitos especiais avançadíssimos para a época, DeMille consegue abrir e fechar o mar Vermelho de forma convincente. Mas a antiguidade finda tão logo o povo hebreu atravessa o mar a pé enxuto. A segunda parte dele se passa na atualidade. Os Dez Mandamentos são usados como libelo aos males da Primeira Guerra Mundial.
A partir da década de 1930, o Egito Antigo aparecerá incontáveis vezes nas telonas e telinhas. De todos, o que mais me impressionou foi o polonês “Faraó”, de Jerzy Kawalerowicz, lançado em1966. Hoje, bastante esquecido.