A literatura como instrumento de refinamento humano
Fernando da Silveira 17/08/2017 18:21 - Atualizado em 21/08/2017 17:19
Não há quem não saiba que o gosto literário é discutível. Como então cobrar aos que com a Literatura se deparam, por opção ou por necessidade imposta pelos bancos escolares e pelos compromissos acadêmicos, uma apreciação uniforme? É que a Literatura, tanto em sua criação quanto em sua fruição, requer, embora não relegue a massa cefálica, mais sentimento e imaginação do que inteligência. Michelangelo, ao afirmar que “se pinta com o cérebro e não com as mãos”, ficou no plano da meia verdade. Tece-se a obra de arte, sobretudo, com a alma, pois ela é revérbero da sensibilidade. É evidente também que nem todos sentem com a mesma intensidade. Daí a variabilidade do ver estético.
O inesquecível professor Álvaro Duarte Barcelos dizia, como excelente cultivador e naturalmente apreciador da estética romântica, que o bom texto literário, mormente o poético, tem o sabor de capitoso vinho, embriagando-nos fortemente, conduzindo-nos ao mundo encantado dos sonhos bons e até, paradoxalmente, das grandes e pequenas tragédias humanas. Obviamente, não é essa a opinião dos adeptos da estética realista. O italiano Umberto Barbaro comparava o romantismo, nos campos da arte cinematográfica, aos estupefacientes. Para ele era mais letal do que a morfina dos viciados. E Eça de Queirós chegou a doutrinar: “O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade”.
Faltou ao grande Eça de Queirós a observação de que, apesar de tudo, o sentimento não é estranho à estética realista. Ele mesmo, melhor que todos, nos fez sentir com o seu conto “Suave Milagre” o drama das mães viúvas vergadas pelo peso de invencível miséria. Há nesse conto até o paradoxo de um maravilhoso rasgo de piedade cristã, surpreendentemente vinda da pena de um agnóstico. Os textos realistas atingem também o sentimento, mas não sem sopesá-los, em sua criação, com o senso de medida da estética clássica, que influenciou em certos aspectos a arte de Flaubert, Maupassant e Balzac. Parece-me que sem a emoção, evidentemente distanciada do sentimento piegas, não se constrói a boa Literatura.
Eu diria melhor, se afirmasse que a boa literatura é aquela que revela o Homem. É aquela decorrente – melhor diria ainda – da pergunta que o Homem pode se fazer. Parece-me, assim, que a boa literatura é aquela que nos convoca a pensar em nós mesmos. Acho até que ao mergulharmos no nosso eu singularíssimo, poderíamos paradoxalmente nos jactar humildemente (!!!), que somos capazes de ir além de Kant em nossas reflexões. O grande marco da Filosofia Moderna, o imortal autor da “Crítica à Razão Pura” definiu a sua ciência como “a relação de todo o conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana”, caracterizando-se pelo tratamento de quatro perguntas.
Para o notável esteta Luís Antônio Pimentel, deveríamos ir além das quatro perguntas formuladas pelo já citado Immanuel Kant: É bom lembrar de tais perguntas: 1- O que posso saber? Questão, que diz respeito à metafísica, no sentido kantiano de investigação sobre a possibilidade e legitimidade do conhecimento; 2- O que devo fazer? Questão, cuja resposta é dada pela moral; 3- O que posso esperar? Questão que nos leva à virtude teologal da Esperança, assunto que diz respeito à religião; 4- O que é o homem? Questão que nos conduz à antropologia e que, segundo o próprio Kant, é a mais importante, pois em última análise se reduzem as outras três. Faltou-lhe, porém, como salientou Pimentel, ir além. Em suma: “nos perguntar humildemente a razão pela qual o homem é um enamorado da beleza”?
Certamente Pimentel valeu-se da opinião de Terry Eagleton, o consagrado autor de “A Ideologia da Estética”, a defender com ardor o discurso do sentimento. Atentem bem para a sua veemente afirmação: “O mundo dos sentimentos e das sensações não pode ser simplesmente ignorado como subjetivo, como o que Kant desdenhosamente nomeia de egoísmo do gosto; ao contrário, precisa ser trazido para dentro do corpo majestoso da razão”. Eu, como pobre lidador do Direito, acho até que a unidade do Ordenamento Jurídico é um traço de beleza de clareza solar, pois o Belo é a unidade na variedade. E por assim entender, sempre busco o socorro de um valho trecho clássico do “Contrato Social” de Rousseau. Ei-lo: a melhor forma para se captar a essência da lei no nobre empenho de se alcançar a Justiça, não é se ater “ao que está gravado em tábuas de mármore ou bronze, mas no coração dos cidadãos”.
Parece-me, assim, que a boa literatura tem um forte teor civilizatório, pois busca o refinamento do ser humano, pois é de fato a sua meta entranhar no peito do selvagem e do bárbaro o coração. O coração do ser humano verdadeiramente civilizado. Do Homem ator de uma sociedade civilizada, pois capaz de sentir e de amar. Enfim, de se preocupar com o todo a tal ponto que chega â esfera dos desvalidos. Logo fazendo da bondade um ato de profunda inteligência. Inteligência impregnada de beleza.
A estética do nosso tempo, embora arme jogos de inteligência para levar o receptor a pensar e ainda que faça do não dito a tônica do seu discurso artístico, só alcança de fato o patamar da boa Literatura, se as metáforas e alegorias desenrolarem-se movidas por um alto sentido de beleza, logo quando sensibilizem intensamente. Foi esse o caminho trilhado, por exemplo, por Oscar Wilde, o gênio de “O Rouxinol e as Rosas”, quando essa modalidade estética dava os seus primeiros passos. É essa a estrada que deve ser seguida, por exemplo, pelo educador, como nos dizia premonitoriamente lá pelos anos 40 do século passado o professor do Liceu de Humanidades de Campos Hipólito Drevé de Vasconcellos. Quem não sente é incapaz de amar e compreender. A educação do gosto, estimulando o sentimento estético e construindo o juízo estético, pode ser resumido no espicaçar os nervos e no acordar a alma adormecida. Esse tipo de educação impõe-se como dever pedagógico. Pedagogia que nos leva ao Outro, ao injustiçado, ao que perece na miséria. A boa Literatura é aquela que nos faz encontrar com o irmão esquecido.

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