Crise da civilização sem Deus
Aluysio Abreu Barbosa e Matheus Berriel 09/07/2017 09:53 - Atualizado em 09/07/2017 09:53
Dom Roberto Ferrería Paz
Dom Roberto Ferrería Paz/Antônio Leudo
Um ruído de comunicação sobre horário fez com que um dos dois jornalistas fosse sem pauta à entrevista do bispo de Campos, o uruguaio Dom Roberto Ferrería Paz. E talvez tenha sido melhor assim. Com os assuntos fluindo naturalmente, o clérigo mapeou o Ocidente entre duas crises: uma civilizacional, pela falta de Deus, e outra econômica, pela predominância do capital financeiro. Sem rodeios, ele abordou temas polêmicos como direitos LGBT, maconha e aborto. Em âmbito mais local, falou também sobre Lava Jato, Chequinho, Rafael Diniz, casal Garotinho e possibilidade de caos com a “venda do futuro”. Além do presente, o bispo analisou erros e acertos da Igreja Católica e outras religiões ao longo dos tempos.
Folha da Manhã – Estamos vivendo momentos conturbados em Campos, no Estado do Rio e no Brasil. Como o senhor analisa esses contextos?
Dom Roberto Ferrería Paz – Se entrecruzam duas crises, uma estrutural civilizatória, que é muito maior e abrangente. Estamos numa crise do nosso modo de viver, que não dá mais. E uma crise mais particular, específica da economia, a partir de 2008, que ainda não foi totalmente resolvida.
Folha – A partir da bolha imobiliária dos EUA.
Dom Roberto – A crise do capital financeiro, da bolha, de uma economia fictícia, de valores que não existem. São valores especulativos. Hoje, quem domina o mundo é o capital financeiro. A financeirização da economia, essa hegemonia do capital financeiro, leva certamente a uma globalização que tem efeitos perversos. Nesse aspecto de crise civilizatória, em todo o mundo, com um impacto negativo, que vai nos levar a outro estilo de vida, outros valores, e a necessidade de um diálogo entre a economia e a política, porque a política ficou subordinada a ser balcão de negócios da economia. Com isso, o estado está cada vez mais reduzido, recuando, deixando espaço ao mercado. Há uma tentativa na Europa, ou mais no que se chama Eurasianismo, China e Rússia, de trabalhar mais o estado como indutor, um terceiro desenvolvimentismo industrial. Bresser Pereira, no livro “A Construção Política do Brasil”, fala de um terceiro desenvolvimentismo, que trata de articular estado e mercado. Com projetos de infraestrutura de peso, digamos assim, está cada vez crescendo mais essa influência no mundo da China e da Rússia.
Folha – China e Rússia são exemplos de alternativa? Não são nem democracias.
Dom Roberto – São países grandes, primeiro. A China não é uma democracia. A Rússia se aproximou, mas frustrou.
Folha – Ex-chefe da KGB (polícia secreta da extinta União Soviética), Putin é o presidente vitalício da Rússia.
Dom Roberto – Temos que ver, na história da humanidade, não só a questão da democracia, que é modelo. China e Rússia se assemelham ao que são os regimes mais orientais, que tratam de trabalhar o coletivo. Por isso mesmo, podem ser totalitários. Têm uma tendência ao totalitarismo. Mas, têm uma tendência também a uma visão mais coletiva.
Folha – Os alemães têm senso coletivista, mas há muito tempo são democráticos.
Dom Roberto – O alemão é mais comunitário, não coletivista. não chega a ser totalitário, apesar de ter passado pela experiência nazista, um dos totalitarismos de raça.
Folha – Depois tiveram a experiência stalinista também, na Alemanha Oriental.
Dom Roberto – Sim, o stalinismo também, este de classe. Mas não se esqueça que foi o vitorioso na II Guerra Mundial. Se não fosse por Stálin (líder soviético na II Guerra), esses 50 milhões que morreram, especialmente na Europa Oriental...
Folha – Sim, na Europa a II Guerra foi definida entre dois genocidas: Stálin e Hitler.
Dom Roberto – Exatamente. Primeiro de tudo, a guerra é fatal para a humanidade. Não nos faz progredir em nada, pelo contrário. Mas estou falando sobre se podemos aprender alguma coisa com a China e a Rússia. Na China, há uma aproximação entre o mercado e o estado.
Folha – É o capitalismo de estado.
Dom Roberto – É o capitalismo de estado. E um estado pouco aberto. Agora, a Rússia tem voltado a uma identidade espiritual, um renascimento cristão, a valores culturais...
Folha – O renascimento da Igreja Católica Ortodoxa Russa, com o fim da União Soviética.
Dom Roberto – O Patriarca de Moscou (líder dos católicos ortodoxos russos), que esteve aqui nos visitando no ano passado, ele tem assinado com o Papa Francisco cerca de 20 itens para a concessão de uma civilização mundial que possa sobreviver, dando ênfase ao aspecto da integridade do planeta, da abertura aos pobres, a justiça social. Não me lembro bem do acordo, mas há uma carta de declaração de princípios.
Folha – O senhor falou inicialmente em duas crises: civilizatória e econômica. Inegavelmente, nosso modelo de civilização é greco-romano-judaico-cristão. Tem valores humanos greco-romanos e o cristianismo, que é a moral judaica romanizada. Esse modelo chegou ao ocaso?
Dom Roberto – A partir do século XVIII, com o Iluminismo, há uma ruptura da razão com a fé. A razão se tornou, cada vez mais, absoluta. Esse desvario da razão, que não está na civilização judaico-cristã, foi eliminando a Deus. Deus se tornou uma hipótese desnecessária. Então, nos parece que a crise civilizatória tem a ver com o esquecimento, com o secularismo, com uma civilização sem Deus. Porque, sem Deus, como dizia muito bem o Papa Bento XVI, a gente pode construir uma cidade, mas a cidade será menos humana, menos equilibrada. A razão e a fé são duas asas que nos elevam.
Folha – É preciso “compreender para crer e crer para compreender”, como queria Agostinho?
Dom Roberto – Exatamente. Essa citação de Santo Agostinho é precisa: “crer para entender, entender para crer”. Agora, é uma crise de razão tecnocrática. Uma razão que só vê coisas, só vê mercadoria, só vê matéria. É incapaz de ver a natureza ou a terra como algo vivo. Por isso há uma crise organizatória. Se perdeu o olhar judaico-cristão. Claro que não é só da civilização judaico-cristão a capacidade de olhar para a terra como organismo vivo. Mas, eu diria que há o esquecimento das sabedorias espirituais. O esquecimento de um humanismo aberto a Deus.
Folha – Em relação à predominância do capital, o senhor acha mesmo que é um fenômeno novo? Ela não começou já nos sécs. XVII e XVIII, com a Revolução Liberal Inglesa e a Revolução Industrial?
Dom Roberto – Agora, com a terceira revolução industrial, principalmente com as novas tecnologias, a transferência de capital, as bolsas, operam 24 horas por dia. Então, criam um mundo de investimentos que não existe, que é papel, que são ordens de compra, mas não existem na realidade. Isso leva a uma economia que não tem escala humana, não tem controle humano.
Folha – Essa questão da transferência de capital também não começa um pouco antes, na Idade Média, com os Templários (ordem católica) nas Cruzadas?
Dom Roberto – Sim, claro. E com os judeus também, porque, como eles não podiam ter acesso a outras profissões, se dedicaram à profissão banqueira.
Folha – Como o judeu Shylock em “O mercador de Veneza”, de Shakespeare?
Dom Roberto – Exatamente.
Folha – Falando sobre Campos, como você avalia o cenário local, com a venda dos royalties?
Dom Roberto – O petróleo traz coisas interessantes, mas não desenvolve a economia de forma orgânica. Cria dependências e, digamos assim, não distribui bem a riqueza. Uma economia centrada só nos royalties está fadada ao fracasso. O problema é que faltou se preparar para o fim do petróleo, dos royalties. Acredito que não aconteceu, e estamos vivendo isso tudo. Pensávamos que ia durar. Era uma economia movida a royalties. Ninguém previu. Se fez pouco para adaptarmos a uma situação desse tipo.
Folha – Os recursos são finitos.
Dom Roberto – Os recursos são finitos. O petróleo também faz parte da nossa crise civilizatória. É danoso, uma energia que suja.
Folha – O Albert Hourani escreveu o livro “Um estudo sobre os povos árabes”. Analisando desde o advento do Islã, no séc. VII, ele fala como depois os árabes foram dominados pelos turcos. E quando enfim se libertaram desse domínio, ao final da I Guerra Mundial, descobriram que estavam sentados em cima de uma riqueza enorme: o petróleo. E como essa riqueza pela qual não trabalharam, em vez de proporcionar a retomada deles aos seus tempos de glória da Idade Média, serviu à manutenção de uma liderança tribal e atrasada sobre os demais, como acontece até hoje. O paralelo se aplica a Campos?
Dom Roberto – É fascinante. Leva, não diria um caudilhismo, mas gera, não uma democracia participativa, mas lideranças que podem ser tribais. Eu acredito que o populismo é um pouco mais evoluído.
Folha – O que o senhor chama de populismo?
Dom Roberto – Populismo é um governo que trata de governar para o povo, sem o povo. Uma espécie de despotismo iluminado. Lembra dos déspotas dos séculos XVIII e XIX, como czarina Catarina, a Grande, da Rússia. Houve vários. Eles acreditam que são lideranças que a gente deve seguir. Agora, o populismo tem duas fases: uma paternal, com Getúlio, o “pai dos pobres”; e, depois dos anos 1980, 1990, conhecemos um populismo que já não trabalha mais com a classe operária, mas com lumpemploretário, isto é, o trabalhador informal.
Folha – O senhor chamou o Getúlio Vargas de “pai dos Pobres”. Esse termo também foi e é usado para adjetivar Lula. Concorda com esse paralelo entre os dois?
Dom Roberto – Há uma aproximação, mas não podemos dar a envergadura de Getúlio ao Lula. Há uma aproximação, especialmente no Nordeste. Já o Getúlio teve um impacto civilizatório para todo o Brasil, nacional.
Folha – Recentemente, foi veiculada a notícia de um bebê do Canadá que será registrado sem a identificação do sexo, para decidir seu gênero no futuro. Como a Igreja vê esse assunto, bem como os relacionamentos homoafetivos?
Dom Roberto – As religiões têm suas doutrinas reveladas, que não são negociáveis. Todas regulam a família, a vida. E todas, digamos, de uma forma ou outra, questionam a sério a ideologia de gênero, de que o gênero se constrói. Nenhuma religião, nenhuma igreja aderiu a isso. Posso dizer que nem o marxismo aderiu a isso. A ideologia de gênero não tem base científica, porque todas as nossas células são sexuadas. Você não escolhe o sexo, já nasce com ele. A ideologia de gênero possibilita que você seja José hoje e Maria, amanhã. Depois, não sei o que vai ser. Isso me parece que também é algo da crise civilizatória e também uma crise de identidade. Mas, em relação às pessoas, a Igreja as respeita. A Igreja sempre será aliada para combater qualquer discurso de ódio ou de intolerância. Isso é muito claro com o Papa Francisco. As pessoas têm seus direitos. Mas a questão de gênero é muito mais complicada do que a homossexualidade, porque destrói o vínculo familiar. Se você não sabe o que é, como vai construir uma família? Que tipo de família? Quem é pai e quem é mãe? Tudo vai ser como você se define. E também fica em aberto, porque não são identidades permanentes. Quando não há uma identidade, a família também perde sem sua identidade. E sem família, nós não temos a possibilidade de construir uma sociedade permanente. Na América Latina, houve na OEA uma discussão sobre os direitos dos homossexuais. A delegação cubana, que não tem nada a ver com a Igreja Católica, queria direitos sociais da família. A delegação brasileira disse que não pode aderir a isso, porque segue um padrão dos direitos LGBT, não podendo definir o que é família.
Folha – Voltando à questão política, como o senhor vê, hoje, a crise do Estado do Rio de Janeiro?
Dom Roberto – É uma falência. Como o livro de Gabriel García Márquez, “Crônica de uma morte anunciada”. O desfalque do Estado, a falta de responsabilidade, os partidos que mais ou menos estavam na frente. Aí, sim, se aplicaria a palavra tribalismo. Partidos fisiológicos, lamentavelmente. Tudo isso levou a uma falta de responsabilidade política e social em relação ao Estado do Rio de Janeiro, a ponto de ser um dos estados de pior situação.
Folha – Como o senhor vê a Lava Jato?
Dom Roberto – Nos parece que, do ponto de vista dos procedimentos, essa força-tarefa foi algo exemplar, que nunca aconteceu. É uma experiência nova de combate à criminalidade econômica, financeira e política. Agora, também vale dizer que, em certos momentos, tornou-se seletiva. Embora agora esteja atingindo também ao Aécio, você vê que, ao mesmo tempo...
Folha – Chegou ao Aécio (PSDB), prendeu o Eduardo Cunha (PMDB), prendeu parte da cúpula do PT e do PP, ajudou a derrubar a ex-presidente Dilma e agora coloca em risco a permanência de Temer no cargo. Seletiva em quê?
Dom Roberto – Em etapas. Ultimamente, atingiu ao PSDB. Antes não estava sendo atingido. Não se atingiu a todos os partidos de imediato. E está claro que a criminalidade econômica-financeira não começa com o PT.
Folha – Não começa, mas se torna institucionalizada.
Dom Roberto – Também não.
Folha – É o que já afirmaram os procuradores federais à frente da Lava Jato.
Dom Roberto – A possibilidade da compra da reeleição não foi o PT.
Folha – Corrupção no Brasil existe desde a carta de Caminha. Mas sempre foram ações individuais. Como linha de montagem, não começou com a ascensão do PT ao poder?
Dom Roberto – Eu não nego isso. Quero dizer que havia raízes. Há um sistema a partir da Constituição de 1988, que nasceu híbrida. Tinha sido pensada para um parlamentarismo.
Folha – E venceu o presidencialismo na época do plebiscito de 1993.
Dom Roberto – A partir daí, se deu o que se chama o modelo de presidencialismo...
Folha – Presidencialismo de coalizão, ou cooptação.
Dom Roberto – De coalizão, que virou cooptação. Você, para ter governabilidade, tem o procedimento do orçamento, o leiloamento da máquina pública, cargos, ou finalmente o Mensalão. Todos os meios levam à mesma coisa: tornar a política um balcão de negócios. Claro, isso foi se avolumando, mas, digamos, a classe política se tornou eleitoreira...
Uruguaio que votaria em Rafael
Folha – O senhor citou a compra da reeleição de Fernando Henrique. Não há dúvida que houve compra de votos ali. Mas uma coisa é comprar deputados individualmente. Outra coisa é todos os deputados da base receberem o mesmo valor todo mês. Deixa de ser um acúmulo de ações individuais e passa a ser uma instituição. Isso não se deu com o PT?
Dom Roberto – Sim. Virou uma linha de montagem. Mas a origem está nesse sistema. Teríamos que evoluir, impedir essas alianças. O fato de ter segundo turno leva a isso, necessariamente. Impede um governo de princípios. Também o fato desses partidos nanicos, legendas de aluguel.
Folha – A política brasileira está desmoralizada. Como o senhor vê o fato de líderes religiosos, não só da Igreja Católica, como de outras religiões, se candidatando a cargos públicos?
Dom Roberto – Líderes religiosos, chefes de igreja, eu vejo mal. Eles têm outra finalidade. Estão para inspirar, não para governar. Inspirar pessoas e formá-las bem. Agora, é muito difícil não cair no que se chama uma hierocracia, hierarquia sagrada. Tivemos aspectos que a Igreja fez isso e fez mal. Teocracias. Vemos isso no Islã. O que nós temos, talvez diminua a corrupção, mas a liberdade também diminui muito. Ou também, sem chegar a tanto, o aparelhamento do estado. As igrejas se tornam distribuidoras de privilégios. Cheque Cidadão e outras coisas. E aparelhamento também, por exemplo. Se uma Igreja não gosta de Carnaval, ignora isso, sem levar em conta o desejo da população.
Folha – Qualquer generalização é perigosa, mas há denominações, como a IURD, que claramente trabalha para a formação de uma bancada.
Dom Roberto – Há um projeto de poder. Inclusive, penso que o Edir Macedo, ele ou o Marcelo Crivella (PRB), serão presidentes dentro desse plano. Querem ser. Se vão ser, é muito difícil que sejam. Mas o Crivella é bem diferente do Macedo. Eu o conheço, inclusive ele ia às reuniões da Pastoral dos Católicos e Cristãos na Política. É uma pessoa aberta ao social. Foi um dos inspiradores da Fazenda Canaã. É interessante ver o imaginário da IURD, que trabalha muito com Israel, com os kibutz. Agora, ele é um homem que me parece ter valores bons. Mas, a igreja em si, a IURD, tem um raciocínio um pouco bitolado, de não abertura. Na eleição ao Governo do Estado, não nessa que ganhou para prefeito, ele nos passou isso, que ele pensava diferente, não tinha esse viés sectário em nível religioso. No entanto, agora, como prefeito do Rio, nomeou bispos...
Folha – Historicamente falando, não chega a ser irônico que Lutero tenha rompido com a Igreja pela venda de indulgências, e agora, como resultado desta ruptura, há denominações protestantes que vivem de viver indulgências?
Dom Roberto – Lutero estava certo em relação à venda de indulgências, mas não quanto ao que eram indulgências. Hoje, há venda de escrituras de lote no céu. A causa de Lutero, que nós chamamos da causa da Reforma, é católica e luterana ao mesmo tempo, e continua com Francisco. Essas igrejas pentecostais de terceira geração não têm identidade de reforma, não querem reformar nada. Não têm uma proposta de mudar a sociedade, nem de mudar a Igreja. São agências de salvação, de troca. Há igrejas pentecostais muito sérias. Por exemplo, a Assembleia de Deus tem sido a que mais cresceu. É muito mais numerosa que a IURD. A Igreja Batista também é muito séria. O grande problema da Assembleia de Deus é que não é uma igreja, mas uma federação.
Folha – É inegável que as igrejas evangélicas cresceram muito nos últimos anos. Em contrapartida, a Igreja Católica, que tinha perdido um pouco de força, está se recuperando desde a chegada do Papa Francisco. Como o senhor vê essa renovação da Igreja Católica?
Dom Roberto – Creio que a recuperação começou com o Papa João Paulo II, em termos de presença pública. Embora, quem reduziu um pouco a presença protestante foi a Renovação Carismática católica. Não em termos de combater, não é isso, mas de dar devida importância aos leigos, à oração, a um tipo de culto, à música; atualizar a evangelização, como foi a proposta de João Paulo II. Agora, Francisco traz de volta aquele que nós nunca deveríamos ter perdido: a periferia. O pentecostalismo cresceu onde não há estado, nas periferias. Onde há estado, não crescem tanto, começam a diminuir. Por exemplo, em Campos, o Crivella só ganhou nas duas zonas eleitorais de Guarus (76ª e 129ª). É onde temos essa problemática, a parte que está mais abandonada pelo estado. Não tem saneamento básico. É onde há mais violência. Onde nós tratamos, como bispo diocesano, de ter uma presença maior.
Folha – O senhor falou da Renovação carismática. Na América Latina, nas últimas décadas do século XX, houve o fenômeno e Teologia da Libertação, que os críticos acusavam de ser marxismo com cristianismo. Embora tenha conquistado apoios no meio intelectual, a Teologia da Libertação nunca foi popular. A Renovação Carismática, em contrapartida, não tem a mesma pretensão salvacionista na Terra, mas com certeza é mais popular. Como o senhor analisa e com qual simpatiza mais?
Dom Roberto – Eu simpatizo com as duas na medida em que elas respeitam a doutrina cristã. Eu diria que a Teologia da Libertação é necessária. Mas devemos definir qual delas: a Teologia da Libertação que diz que devemos vencer a miséria, empoderar os pobres, lutar pela justiça. Essa me parece não só justa, como necessária e cristã. Por sua parte, a Renovação Carismática católica, nas suas melhores expressões, tem um ministério ao qual eu acompanho. Pessoas que são da Renovação como o Molon (deputado federal do Rede). Tem o Márcio Pacheco (deputado estadual do Paraná), que também é da Renovação e está no PSC, embora que não eu não saiba por quanto tempo, porque o PSC é do nosso “amigo” Bolsonaro... (risos)
Folha – O Deltan Dallagnol (procurador à frente da Lava Jato) e Marcelo Bretas (juiz à frente da Lava Jato no Rio) são evangélicos;
Dom Roberto – O Dallagnol é batista. Mas, sim, é verdade, é protestante. Inclusive o Dallagnol sempre começava suas palestras fazendo uma invocação. Ele considerava a Lava Jato uma Cruzada, às vezes. Mas acho um rapaz muito bom. Li um livro dele, achei muito bem intencionado.
Folha – E o Moro? O que o senhor acha dele?
Dom Roberto – O Moro é católico (risos). Estudou nos Estados Unidos. É um homem de pureza, de ideal republicano, que está muito convicto. Vejo neles, Dallgnol e Moro, uma espécie de intocáveis (força tarefa dos EUA que prendeu o mafioso Al Capone nos anos 1930).
Folha – E quem é o Al Capone?
Dom Roberto – (Risos) Aqui não temos só um. Se o Al Capone vivesse aqui, não teria sobrevivido (risos.)
Folha – Falando de Campos. Como o senhor vê os seis primeiros meses do governo Rafael Diniz?
Dom Roberto – Bom, pensamos que o Diniz foi uma novidade boa para o cenário. Boa também pelo pai, que eu conheci: um homem idealista, íntegro. Penso que o Rafael bebeu disso. Agora, é certo que ele não tinha nenhuma experiência administrativa. Foi tribuno uma vez e, de vereador, passou para prefeito. É muito católico, como o pai também era, e a mãe. Talvez, se ele tivesse tido outro mandato como vereador... Agora, pelo menos, ele está tratando de sanear, equilibrar, ter uma gestão técnica. Mas vejo também, inclusive perguntei a ele, se ele não via nada de positivo da gestão anterior.
Folha – Ele falou disso em entrevista à Folha no domingo passado.
Dom Roberto – Então, até que foram inteligentes as minhas perguntas.
Folha – E as respostas, foram inteligentes?
Dom Roberto – Eu teria sido mais generoso. Eles (os Garotinho) também levaram um certo progresso aos bairros mais periféricos.
Folha – O senhor é cidadão uruguaio, não vota aqui. Mas se votasse, na última eleição a prefeito de Campos, teria votado em quem?
Dom Roberto – Em Rafael, claro que sim. Ele é a expressão da nossa Igreja, mas não só por isso. Era necessária a mudança, a alternância. A mudança de paradigma, uma gestão mais participativa. Não basta só a gestão tecnocrática. É uma mudança que também deve promover a cidadania e continuar respeitando especialmente as camadas mais populares, os pobres.
Folha – E essas medidas que ele tomou recentemente sob muitas críticas, como fechar o Restaurante Popular e aumentar a passagem de ônibus?
Dom Roberto – Me parece que não foram devidamente ponderadas, foram um pouco precipitadas, especialmente o fechamento do Restaurante Popular. Sabemos porque vemos, todos os dias, uma fila interminável na casa das irmãs, que atendem com muito amor e dão quentinhas. O problema do Restaurante Popular, embora não solucione a fome, mitiga. Num momento de crise, é uma medida que não deveria ter sido tomada sem dar outra possibilidade.
Folha – Não foram ponderadas, mas foram necessárias?
Dom Roberto – Eu diria necessárias se não tem dinheiro, mas é preciso priorizar. E para nós, Igreja, a prioridade sempre serão os pobres. É a opção de Cristo. Com a fome, você não pode brincar. A fome é uma questão imediata. É verdade que o Restaurante Popular não vai resolver isso. Não é política estruturante, não transforma, mas atenua.
Folha – E o que o senhor acha da “venda do futuro”? Se passar o que os Garotinho acordaram com a Caixa, que é o que está vigorando, com a queda da liminar, o próprio Rafael admitiu que será o caos. O que o senhor acha disso? Como a Igreja vê a possibilidade do colapso em uma cidade de 500 mil habitantes?
Dom Roberto – A mesma explicação para a venda do futuro é que, se não a fizesse, o colapso seria naquele momento. Foi a escolha do momento de colapso.
Folha – Aquele momento era num ano eleitoral. Colapsos em anos eleitorais são sempre suspeitos.
Dom Roberto – Sim. E inclusive há toda uma legislação para que não aconteça esse tipo de créditos grandes. Mas, o que deve se julgar, a Igreja proporciona, não diagnósticos, mas elementos de juízo. Se houve improbidade, se houve respeito às leis, é isso que a gente tem que ver. Me parece que, tanto um como o outro caso, se devem à falta de planejamento e desperdício. Isso, sim, deve ser observado. Por que chegamos a esse momento? Faltaram políticas de transparência há muito tempo, não só com os Garotinho.
Folha – Durante todo o período dos royalties, de 1989 a 2016, Campos só foi administrada pelos Garotinho ou pessoas egressas do grupo deles. Nos últimos 30 anos, Rafael é o primeiro prefeito da cidade que não veio desse grupo.
Dom Roberto – É verdade. Agora, o voto ao Rafael não foi um voto de adesão, mas um voto de protesto.
Folha – Falamos da Lava Jato. Qual a sua opinião sobre a Chequinho?
Dom Roberto – É um expediente de corrupção eleitoral. Tenho dúvidas sobre a intenção, mas materialmente configura corrupção. Não posso julgar o que queriam fazer com isso, se havia intenção. Não julgo as pessoas, julgo os atos.
Folha – Até junho, havia 18 mil pessoas cadastradas no Cheque Cidadão. De julho a agosto do ano eleitoral, em três meses, passou para 35 mil. A denúncia foi feita pelas próprias assistentes sociais da Prefeitura que faziam o cadastro.
Dom Roberto – Não se sabiam os números, mas todo mundo sabia que estavam fazendo isso. Não há como negar. Me parece que é um expediente muito ruim. Mas também, e aí que está o que eu gostaria de que fosse o legado do Rafael: fazer crescer a sociedade civil campista, fazer crescer os movimentos sociais, e, de alguma forma, romper com essa porqueira. Houve o lado dos Garotinho, mas também os cidadãos se venderam.
Folha – E como a Igreja vê a possibilidade do colapso, se vingar a “venda do futuro” nos termos dos Garotinho?
Dom Roberto – Isso vem acontecendo no Estado do Rio. Acredito que o Rafael está fazendo o possível. Agora (na quarta, dia 5, quando a entrevista foi feita) está em Brasília. Acho que não vamos chegar a isso. Mas, se chegar, vamos somar esforços para sair do colapso e conseguir recursos emergenciais que possam evitar essa catástrofe social. Imagina o caos. Meio milhão de pessoas! A Igreja vai tratar de colaborar na busca de soluções imediatas. Aí todos os campistas deverão se ajudar, não existe mais governo e oposição.
Folha – É comprovado que, em situações de crise as pessoas se prendem à fé, à religião. Qual o papel da igreja nesse cenário de crise brasileira, estadual e municipal?
Dom Roberto – Nós estamos fazendo um mutirão pela paz. O Estado é um dos estados mais violentos, e Campos, uma das cidades mais violentas do mundo. Temos que trabalhar a paz social. É o que nos recomenda o Papa Francisco. A Igreja está para dar a verdadeira esperança. Temos que manter a esperança em soluções, no diálogo, e oferecer sempre a nossa Igreja para facilitar o diálogo. A Igreja está para servir a humanidade, não para servir-se dela. Não somos máfias espirituais que, quanto pior a situação, melhor para nós. Ao contrário: acreditamos em um Deus que é bom e misericordioso. Não trabalhamos com o terror e o medo. O mal trabalha com o medo.
Folha – Há igrejas cristãs que falam mais do Diabo do que de Deus.
Dom Roberto – Quem fala mais no Diabo do que em Deus, é máfia. Quem, em um culto, fala que se você não pagar o dízimo... (risos) é óbvio que é uma máfia. E nós não somos máfia, queremos ser a Igreja de Jesus, que veio para libertar as pessoas. O Evangelho é a boa nova.
Folha – Embora, nas Cruzadas, a Igreja tenha matado bastante.
Dom Roberto – As Cruzadas foram guerras defensivas. Os cristãos não podiam ir mais à Terra Santa, eram hostilizados. Não estou de acordo com o método. Se eu tivesse na Idade Média, seria como São Francisco, que foi abençoar. Mas as Cruzadas foram respostas, não foram guerras para conquistar território. Me parece muito pior o que fizeram os países europeus no colonialismo do que as Cruzadas, que foram uma guerra de reação para os santos lugares.
Folha – Com todo o respeito, mas também a escravidão contou com a aprovação da Igreja. Portugal começa a fazer tráfico de escravos da África após a aprovação do Papa.
Dom Roberto – Sim, inclusive o nosso querido Antônio Vieira recomenda, como saída, trazerem negros que aguentam mais o trabalho. Por isso nós temos que pedir perdão. Os islâmicos prendiam os escravos. Os portugueses não os aprisionavam.
Folha – Não é melhor ficar com Gandhi (líder pacifista indiano): “Nessa história de olho por olho, acaba todo mundo cego”?
Dom Roberto – Sim. Agora, Gandhi dizia que, diante de Hittler, por exemplo, teríamos que pegar em armas. Ou mesmo Chomsky (intelectual estadunidense). Eu não acredito na violência, não acredito nas guerras. Penso que tivemos um papa, João Paulo II, que, em 2000, foi o único a pedir perdão. Pediu perdão às mulheres, perdão pelas Cruzadas, perdão pelos regimes autoritários que defendemos na América Latina. Pediu perdão por muitas coisas. Não vejo de nenhuma outra religião a mesma honestidade. E também as outras religiões foram tão bárbaras, agressivas e violentas também. Você fala do Gandhi, mas o hinduísmo está matando cristãos em quantidade hoje. Hoje!
Folha – O islamismo e o hinduísmo são históricos opositores em conflagrações violentíssimas. Tiveram que separar o Paquistão da Índia para não matarem um ao outro.
Dom Roberto – Sim. Acredito que o Evangelho questiona todas as religiões. Jesus questiona a todos. Agora, não vamos dizer que só a Igreja agiu mal. Por exemplo, os ateus estão resolvendo reconsiderar. Havia um ateu que dizia que o cristianismo era o pior. Agora que estão se aproximando os terroristas islâmicos, diz que ainda preferiria morar em um país cristão (risos).
Folha – Os piores crimes cometidos pela humanidade foram cometidos por religião.
Dom Roberto – Sim, sim. Ou contra a religião também. A corrupção do ótimo vira péssimo.
Folha – O senhor é uruguaio. Seu país teve como exemplo o ex-presidente José Mujica. Fazendo uma análise da ascensão das esquerdas ao poder na América do Sul, neste início do séc. XXI, um dos poucos lugares deixou saudades foi justamente no Uruguai. Foi exemplo?
Dom Roberto – Centro-esquerda, não uma esquerda radical. E se dá dentro de um país pequeno, que era chamado de Suíça da América, com uma tradição progressista. O Uruguai sempre foi um país muito equilibrado nesse aspecto. Sempre tratou de fazer crescer a democracia. A luta armada foi um fracasso.
Folha – O Uruguai já foi Brasil: Cisplatina. Acredita que o Mujica daria certo no Brasil?
Dom Roberto – Eu diria que o Mujica expressou apoio à presidenta Dilma várias vezes. Pensou que, de alguma forma, ela estaria fazendo o que ele faria. Agora, a política do Mujica, não. Não, porque, por exemplo, essa liberação da maconha que ele fez, aqui seria um desastre.
Folha – O senhor é contra a legalização da maconha?
Dom Roberto – Eu sou contra. Apesar de que o Fernando Henrique e vários pensadores da América Central (apoiam a descriminação), o argumento do Mujica não é evidentemente o argumento de que consumir a maconha é certo ou errado, mas o grande problema é diminuir a violência do tráfico.
Folha – É contra aborto também?
Dom Roberto – Lógico.
Folha – Até em caso de estupro?
Dom Roberto – Eu sou a favor da vida.
Folha – Mesmo gerada por um estupro?
Dom Roberto – É a vida. Existe pena de morte aqui?
Folha – Só em casos de guerra declarada. E anencéfalo?
Dom Roberto – Também sou contra. Sou a favor da vida. E, na verdade, não é descerebrado. Ele sente. Não vejo nenhum motivo para que não nasça. Nascer e viver um minuto já é grande diferença.

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