A morte de uma grande escritora
Arthur Soffiati - Atualizado em 27/07/2017 18:36
Prestes a completar 70 anos, morreu a escritora brasileira Elvira Vigna, vitimada por um câncer de mama. Por mais de uma vez, escrevi que não gosto de homenagear uma pessoa na data de sua morte. Prefiro lembrar do seu nascimento. Com Elvira Vigna, abro novamente uma exceção por considerá-la, talvez, a maior literata brasileira da atualidade. Não posso dizer que conheço todas as escritoras do Brasil nos dias de hoje. Mas, a mim, não restam dúvidas de que Vigna escreveu muito bem. Corroboro a apreciação de Camila Von Holdefer em artigo escrito logo após sua morte: “Dentro da literatura brasileira, não há quem se iguale ou se aproxime dela”.
Não sei se meus motivos para apreciar a escrita de Vigna são os mesmos de Camila. Cristóvão Tezza, também grande ficcionista da atualidade, entende que um romance não para em pé sem uma boa trama. Até serei capaz de sustentar que a trama pode ser frágil. Creio que a forma de narrar é mais significativa. Aí está o novo romance francês a demonstrar a importância do modo de narrar, dando qualidade de tramas banais.
Não costumo, também, separar escritores de escritoras. Vigna se ombreia com os melhores homens ficcionistas da atualidade. Com os romances “Sete anos e um dia”, “O assassinato de Bebê Martê”, “Às seis em ponto”, “Coisas que os homens não entendem”, “A um passo”, “Deixei ele lá e vim”, “Nada a dizer”, “O que deu para fazer em matéria de história de amor”, “Por escrito” e “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, ela se consagrou como literata. Até os títulos de seus livros são originais e estranhos.
Não li todos eles. Ainda não. Mas os que li me permitem aquilatar a qualidade da prosa de Vigna. Primeiramente, ressalto a maturidade da escritora. Ela é madura demais para a superficialidade do nosso tempo. Ela não faz concessões ao mercado editorial e aos leitores. Ela mesma não se deixa enganar. Parece uma pessoa desencantada com o mundo. E seus personagens refletem o estado de espírito da autora. É claro que um escritor pode levar seus personagens a viver com ilusões. Elvira Vigna não. Seus personagens não são nem heróis nem bandidos. Todos são excessivamente humanos. Ela descortina essa humanidade como se tirasse as camadas de uma cebola. Pode ser que, ao final, nada sobre. Mas, em se tratando de pessoas, e não de cebolas, alguma coisa aparece no fundo. Creio que a crueldade e a amargura delas são flagrantes.
Nem sequer sua crítica social e sua condenação à hipocrisia conduzem-na a qualquer coisa que se aproxime de alguma utopia, ativismo ou esperança. Para todos nós, é confortável usar máscaras, principalmente quando não se tem consciência delas. É confortável nos enganar com uma construção mental. É mais fácil viver como a maioria do que admitir a solidão, quando ela existe. Elvira Vigna não permite nenhum disfarce a seus personagens. Quando permite, não deixa que o leitor acredite nele. Ao final, a vida real é ridícula, irônica e cruel. Um leitor de autoajuda ou de best seller, por exemplo, não gostará de Vigna. Seu mundo é dolorido, pois ela percebe a falta de sentido da sua vida e da dos outros. A própria fisionomia dela me passava a impressão de amargura.
Mas pode ser que estejamos enganados. Elvira manteve seu agressivo câncer em segredo para o mundo. Só seu marido, filhos e os mais íntimos sabiam do problema. Ela não queria piedade. Acima de tudo, ela queria manter a normalidade de sua vida. Ela queria continuar a ser convidada para debates. Pode-se concluir, portanto, que ela queria viver. Que ela sabia esconder.
O desencanto de Vigna ou de seus personagens é perigoso. Ele tangencia o suicídio. Mas o recurso a este também seria ridículo. A saída é não ter saída. É encarar este mundo com uma atitude estoica. Mas nem tudo está perdido. A literatura de Vigna é de altíssima qualidade. Ela narra como poucos. Sua escrita condensa em poucas páginas o que poderia ser distendido em muitas. Ela vai e volta em sua narrativa. No fundo, Vigna é uma humanista, não no sentido de crer na humanidade, mas de se resumir aos dramas humanos. No final, encontra-se alguma coisa importante num mundo sem a mínima importância. Como mulher, ela observa detalhadamente seu entorn o e percebe como as pessoas são patéticas.
Mais uma palavra sobre a autora. Sempre fico atento à consistência da narrativa. Não raro, percebo incongruências, tipo um porteiro falando difícil. A personagem central de Vigna tem estudo, mas, coloquialmente, usa dois tratamentos pronominais e fala de forma coloquial. Portanto, a narrativa é convincente. E ela continuava a escrever. Deixou inéditos para seus admiradores. Há outro aspecto curioso de sua carreira. Ela era desenhista e escrevia também literatura infantil. Os ficcionistas gostam de enganar o leitor. Deixou, inclusive, um livro infantil sobre Kafka. Parece ironia dedicar um livro inspirado em Kafka, escritor do absurdo, a crianças.
A mim, é agradável pensar que fui enganado por ela. Que, por trás de toda a amargura, desencanto, cinismo e crueldade de seus personagens, havia uma pessoa com vontade de viver. Dizem que muitos leitores de Cioran cometeram suicídio diante da desesperança do filósofo romeno naturalizado francês. Numa entrevista, perguntaram-lhe por que ele não se suicidava diante de um quadro tão pessimista que pintava do mundo. Ele respondeu que pretendia viver bastante para apreciar a decomposição do mundo. A atmosfera dos romances de Elvira Vigna pode levar à conclusão de que o melhor caminho é sair do mundo. Mas talvez ela esteja nos enganando. Talvez ela esteja jogando um jogo perigoso com o leitor. O otimista e alegre não gostará dos seus romances. O melancólico poderá deprimir-se com o desencanto dela.
Elvira Vigna novamente destacou-se em 2016, com o romance “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (São Paulo: Companhia das Letras). Novamente a sua acidez. Novamente sua escrita complexa. Novamente, o empilhamento de cortes temporais numa progressão circular. A trama aborda as recordações de uma mulher meio masculinizada, talvez ela mesma, sobre um colega de trabalho viciado em sexo com prostitutas. Ele era casado mas não conseguia evitar as mulheres. Cada uma delas parecia ser a mesma, como um palimpsesto raspado várias vezes para ser reescrito. Assim eram os pergaminhos da antiguidade. Cada puta parecia a mesma puta em qualquer lugar. Mas em Vigna nada é linear. A integridade da narrativa é cortada em partes, dispersas como peças de um quebra-cabeças dispostas em capítulos que não constituem uma narrativa linear. Pelo contrário, o tempo-espaço está fragmentado e espalhado. Cabe ao leitor montar o todo. No final, como costuma acontecer nos romances de Vigna, há um desfecho cruel.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS