Folha Letras: O Resgate
Fabio Bottrel 13/07/2017 18:24 - Atualizado em 16/07/2017 10:08
O ar que circulava no estúdio era frio e pesado, Erasmo sentiu seus pelos do braço se arrepiarem pela potência do ar-condicionado. Tentava manter sua postura impecável como sempre, mas naquele momento outras coisas aturdiam a sua mente, portanto permitia esboçar os ombros caídos, sem mesmo perceber.
— Senador Erasmo Soares, muito obrigado por ter aceitado o nosso convite.
— Eu que agradeço.
— Estamos todos torcendo para que esse caso seja resolvido o mais rápido possível.
— Obrigado.
Ao acariciar com o dedo indicador o escasso bigode que se juntava à barba, o apresentador se mostra um pouco nervoso e incomodado com o que está prestes a falar.
— Surgiu uma hipótese devido às manifestações e as demonstrações de indignação pública perante a política e os políticos, que tomaram todo o país. O senador Heraldo Sargante, que junto com o senhor, era um dos réus do esquema apelidado como “Câncer da Nação”, foi morto por assassinato. E o deputado Regis Cabaleros, que usava jatos das Forças Armadas para levar a família para ver jogo de futebol, também foi morto e teve o seu corpo exposto para servir de exemplo, tal como na época medieval. Um governador e um prefeito acusados de transformarem a cidade em uma máfia a céu aberto, como bolha imobiliária, monopólio em transporte público etc., sofreram um ataque e estão sendo fortemente ameaçados.
O senhor acredita na possibilidade desse grupo, que tem sido chamado de “exterminadores da corrupção”, seja o responsável pelo desaparecimento da sua filha?
— Acredito que não. Esse grupo tem agido em sua grande parte na região sudeste, e nós estamos num local remoto, não acredito que seus laços já tenham se estendido dessa forma, até mesmo porque, hipoteticamente, é um grupo pequeno.
— Então o senhor acredita na hipótese de sequestro?
— Sim. Há fortes evidências que sugerem um sequestro. Os garçons do restaurante onde minha filha foi vista pela última vez alegaram nunca terem visto o homem que a acompanhava por lá, além da reação estranha que conseguiram identificar. E todos eles concordaram quanto a isso, ela estava nervosa no restaurante, a dúvida é: por que ela não gritou ou pediu ajuda?
— Em vista que o senhor é o único parente dela por aqui, a polícia acredita que ela possa ter caído num golpe envolvendo o seu nome e por isso ela não tenha se exaltado e pedido ajuda.
Os olhos de Erasmo se emocionam, ele aperta suas mãos sobre o colo, forçando para que a emoção e sua fragilidade não se tornem tão perceptivos.
— Sim, é possível.
— A própria polícia estava um pouco relutante com a hipótese de um sequestro, devido ao tempo sem entrar em contato. Já passamos de um mês e o sequestrador não entrou em contato para pedir a recompensa.
Erasmo se aquietou, não respondeu a pergunta, mas a sua mente não parava de trabalhar. Talvez ele já tenha conseguido a sua recompensa — pensava consigo mesmo, mas não ousaria dizer, jamais, tais palavras em rede nacional.
— Eu não irei embora enquanto não achar minha filha.
Nesse momento, impossível de segurar as lágrimas, elas começam a cair enquanto ele tenta sem sucesso desmanchá-las com a mão. O apresentador aparenta compartilhar das suas dores ao terminar a entrevista com os olhos lacrimosos.
Assim que as câmeras são desligadas, Erasmo levanta-se com as pernas tremendo por suportar o seu peso, apoia-se na mesa que estava ao lado, antes de começar a caminhar para fora do estúdio.
Há poucos quilômetros dali, já num carro com segurança policial, necessária devido às ameaças que estavam rondando o país e mais um agravante pelo sequestro da sua filha, Erasmo recebe um telefonema.
Pelo telefone seu advogado explica o andamento do processo sobre o “Câncer da Nação”, mas os pensamentos de Erasmo estavam longe, bem longe, onde estava Jéssica. Além do mais, ele não se preocupava tanto, sabia que de uma maneira ou outra ia se safar, assim como todos os outros que além de não serem punidos ocupam presidências de comissões e cargos de altíssima categoria, cujo caráter, de saber público, não condiz com as suas idoneidades.
Além do mais, o chefe do esquema já havia cuidado de tudo e era tão esperto que nem mesmo apareceu nos processos. Havia conseguido, pela fragilidade da estrutura social brasileira, pôr um de seus criados no Supremo Tribunal Federal, o ministro Evandro Cotofi. Limitado no seu campo de estudo, tentou algumas vezes concursos para juiz, mas não obteve êxito em nenhum deles, não fez o doutorado, nem mesmo mestrado, nunca escreveu um livro sobre o assunto. Mas, Evandro Cotofi cumpria sem questionar as tarefas ordenadas e possuía um caráter dúbio, necessário para seus planos de enriquecimento pessoal e partidário. Cotofi já havia tirado o partido e o chefe muitas vezes de algumas encrencas que vazaram. Perceberam, então, que o garoto tinha habilidade para a coisa.
Não foi tão difícil mantê-lo no cargo, encheram o rapaz com milhares de manifestações protocoladas no Supremo Tribunal Federal para que assinasse, mais algumas entrelinhas e o currículo do então fracassado na área acadêmica tornara-se um grande motivo de orgulho.
Erasmo se despediu rapidamente do seu advogado, não estava com cabeça para essa conversa no momento, afinal acabara de passar por fortes emoções dando aquela entrevista. Assim que colocou o celular no bolso, foi surpreendido por um dos polícias de moto, que acompanhavam o carro. Abaixou o vidro assim que o militar acabou de bater e escutou as palavras que ele, aliviado, falou:
— Senhor, acabamos de receber novas informações sobre o paradeiro de sua filha. - Pediram-no que os acompanhasse imediatamente à delegacia.
Erasmo vibra com a notícia, levanta o vidro e recosta novamente no confortável banco traseiro, esperançoso.
— Tudo vai ficar bem – disse o motorista.
Erasmo abriu os olhos e fitou-o pelo retrovisor central. Seu semblante é imponente, moreno. Com o balanço do carro, percebia seus cabelos cacheados por baixo de um quepe que cobria toda a sua face acima da testa. Seu bigode aparentava um tanto espesso em relação à barba rala que encobria seu queixo e bochechas. Seus olhos iam fixamente de encontro aos de Erasmo.
— A calma sempre foi a melhor maneira de solucionar um problema.
Percebia uma calma nunca vista antes na voz do motorista. Era uma tranquilidade sem perder a imponência, uma serenidade que transpassava confiança e seriedade.
— Conseguiram chegar ao suspeito? – pergunta o motorista.
— Não sabemos quem é ainda, mas o identificamos.
— Ela pode estar por perto.
— Creio que essa informação agora nos dirá isso.
Erasmo percebe a intensidade no olhar do motorista ao lhe dizer tais palavras com suposta revelação do paradeiro do sequestrador.
— Estamos chegando à delegacia.
Ao estacionar próximo a delegacia, Erasmo rapidamente salta do carro e entra no estabelecimento, junto com os outros policiais que faziam a ronda. Não disse uma palavra, mas sentiu algo de estranho, os olhos daquele homem o fitavam pelo retrovisor com uma concentração de quem repara os mínimos detalhes, até mesmo a frequência da respiração.
A delegacia era ampla e bem arejada, havia um balcão de recepção onde a recepcionista apontava para uma porta que Erasmo deveria passar imediatamente. Escuta alguns gritos de bêbados detidos enquanto caminha até a lateral do local para passar pela porta.
Entrara numa pequena sala que aparentava ser de interrogatório e ali estavam os dois principais investigadores do caso. Encostou a porta e sentou-se à mesa em frente a eles.
— Temos uma notícia importante para lhe dar.
Erasmo escuta atentamente, sua ansiedade aumenta, consegue sentir sua pele transpirar e uma leve taquicardia.
— Hoje resgataremos Jéssica.
(Continua)

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