Onde hoje habita o Neivaldo?
Aluysio Abreu Barbosa 17/06/2017 18:19 - Atualizado em 21/06/2017 12:00
Neivaldo
Neivaldo / Folha da Manhã
Poet de vie (“poeta de vida”). É a expressão criada pelos franceses para definir quem, mais do que escrever versos, é capaz de converter a própria vida em poesia. Entre outras tantas classificações, é o que se pode dizer não só dos 54 anos de vida do comerciante, publicitário e “filósofo” autodidata Neivaldo Paes Soares, como da sua suposta morte na foz do rio Paraíba do Sul. Na próxima quarta-feira, dia 21, se completarão exatos dois anos daquele domingo de junho de 2015, quando ele foi visto pela última vez nas águas do rio que gerou e corta a Planície Goitacá.
No cair de uma noite fria, Neivaldo saiu sozinho do cais do Restaurante do Ricardinho, tradicional estabelecimento de Atafona, ao lado da Igreja Nossa Senhora da Penha, e iniciou a travessia do Paraíba em sua canoa a motor, rumo à ilha do Peçanha, onde residia e costumava receber os amigos. Dali, onde o rio deságua no Oceano Atlântico, ele nunca mais seria visto. Apesar das várias buscas da Marinha, Bombeiros, Polícia e amigos, com mergulhadores e cães farejadores, seu corpo nunca foi encontrado.
Campista, Neivaldo atuou em várias funções em sua cidade natal, inclusive na Folha da Manhã, nos anos 1990, onde costumava colaborar com artigos, geralmente criticando o sistema manicomial brasileiro, e atuou como publicitário. Também tentou a sorte na política, sendo candidato a vereador pelo PT e depois pelo PFL, evidenciando a “metamorfose ambulante” dos seus pensamentos e atos. Mas se sua figura alta e esguia já era bastante conhecida pelo jeitão hiperbólico, questionador e um tanto excêntrico, foi em Atafona que Neivaldo passaria a ser conhecido como “Bambu”, se tornando referência para sanjoanenses, campistas e quaisquer passantes atraídos pelas belezas naturais da foz do Paraíba.
Era 2007 quando ele ocupou a antiga garagem de barcos da família Aquino, no Pontal de Atafona, e retirou sozinho toda a areia que já tomava a sólida construção, fazendo do local seu bar e casa. No verão de 2010, apesar do acesso difícil pela areia e a ausência de luz elétrica, o Bar do Bambu atingiria seu auge de popularidade, quando foi palco para a peça “Pontal”, dirigida por Antonio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi (1955/2015). Em apresentações que reuniram entre 80 a 120 espectadores por noite, sob a luz bruxuleante da fogueira, lamparinas e lampiões, os poemas sobre Atafona de Aluysio Abreu Barbosa, Artur Gomes, Adriana Medeiros e do próprio Kapi eram contados como causos de pescadores, na interpretação dos atores Yve Carvalho e Sidney Navarro, além de Artur.
No último poema do espetáculo, “Manchete de jornal”, Yve se virava para o dono do bar e declamava em voz alta os versos de Adriana: “Ainda freamos o mar/ Com o nosso tesão molhado./ Ainda sentimos frio lá na curva,/ Onde hoje habita o Neivaldo”. E, em cada apresentação, essa era a senha para que a face do homenageado se abrisse em riso e seus olhos lacrimejassem, sempre como se fosse a primeira vez. Sensibilidade à parte, o sucesso inesperado de público, elevando à décima potência as vendas do bar, foi a oportunidade para que seu proprietário fizesse um pé de meia.
Depois de ter sido o anfitrião orgulhoso daquele que talvez tenha sido o último grande momento do Pontal, Neivaldo permaneceria lá até julho de 2012, quando o avanço do mar atingiu seu bar e residência. Como já tinha comprado uma casa na Ilha do Peçanha, ele atravessou suas coisas pelo Paraíba e passou a residir lá, onde o isolamento era quebrado pela manutenção do hábito de receber amigos e curiosos pelo bucolismo do local, além do jeito extravagante, mas sempre acolhedor, do seu novo habitante. Qualquer “lamparão de bico” que aparecesse era recebido com as “iguarias inigualáveis” de quem aprendeu a misturar tinta marrom de rio e verde de mar para escrever poesia com sua própria vida.
Ao desaparecer, Neivaldo encarnou mais do que qualquer um o destino das referências humanas na foz do Paraíba.
Neivaldo em memória:
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Na época do desaparecimento, com a cobertura da Folha em cima, fizemos tudo que poderia ser feito. Mas é uma sensação horrível não achar o corpo do seu irmão. Nosso pai morreu de infarto um mês e meio após Neivaldo sumir. Tenho certeza que não ter a resposta sobre o que aconteceu com o próprio filho contribuiu para isso. Seu coração não aguentou. E o de que pai aguentaria? Minha mãe não passa um dia sem se lamentar. Ela sempre liga para mim para saber se acharam alguma coisa.
Elvio Paes Soares, comerciante e irmão de Neivaldo
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Neivaldo um dia me escreveu: “O dia amanheceu, os pássaros cantam! Mova-se, abra a casa e espere a luz da vida, deixando o sol entrar”. Continuo me movendo no tempo; na vida; “degustando iguarias inigualáveis”; em sabores e paisagens que você rinha o prazer que todos sentissem. O mar continua vindo, numa mudança infinita. Hoje o pesadelo do seu desaparecimento/morte deu lugar a uma infinita saudade que traz para a vida essa “existência humana” que você tanto respeitava.
Auxiliadora Cassiano, bancária
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Quando Neivaldo transformou uma casa de barcos em bar no Pontal, sempre colocava seu velho fogão à minha disposição. Mas o mar levou seu cantinho e ele se mudou à Ilha do Pessanha. Quando soube que ele tinha sumido, acionei alguns parceiros de profissão. Na ilha, ao entrar no seu quarto, sempre impecável, achei livros no chão, lençóis retorcidos e travesseiros espalhados. Ao olhar no varal, a mesma sunga azul que ele vestia no último dia em que foi visto, estava pendurada. Nesse momento, tive a certeza que não havia morrido afogado...
Guilherme Bousquet, inspetor de Polícia Civil
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Bebemos muito Nietzsche, Kafka, Carlos Castaneda nos bares da Pelinca dos anos 1980. Nos últimos anos, nos encontrávamos sempre no meio do Paraíba: ele de canoa; eu, de barco a remo. E ríamos porque a vida nos tirou a Pelinca. E, em troca, nos deu o Paraíba. “Herdei” sua canoa, sua casa no Peçanha, 20 dos seus mais de mil livros e, acima de tudo, uma vida inteira de alegria, de loucura, de lucidez e a certeza de que tudo continua valendo a pena.Vai, meu amigo, pois só os loucos, os artistas e os anjos atravessam a existência do “Portal de Atafona”.
Luiz Henrique Araújo, fiscal de Meio Ambiente
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Lembro-me de Neivaldo no idos de 80/90, quando ele discorria sobre humanismo e política, com percepções profundas sobre a vida e a história do mundo e do Brasil. Passaram-se anos sem encontrá-lo, até que, em um verão em Atafona, fui o bar de Neivaldo no Pontal de Atafona. Com o avanço impiedoso do mar e a destruição do bar, Neivaldo foi morar na ilha do Peçanha, onde remontou seu bar, e, onde por inúmeras vezes para lá naveguei em companhia de esposa e amigos para beber uma cerveja gelada e desfrutar das iguarias.
Filipe Estefan, procurador de São João da Barra
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Lembro quando conheci o Bar de Neivaldo. Num lugar fascinante, fomos recebidos por um anfitrião de risada extravagante com uma cachacinha na mão, descalço, fritando um peixe, receptivo, carismático, com o riso fácil. Difícil ser indiferente à sua irreverência e espontaneidade. Logo fizemos amizade. À beira do rio, todos ali se libertava, nas rodas de violão dando boas risadas, declamando poesia, filosofando à luz do lampião, virando noites vendo a lua, tocando mais uma canção. Essa época marcou a minha vida.
Pedro Henrique Motta, comerciante
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Como me esquecer de você, Neivaldo, com suas divagações, seu buscar incessante, desde o tempo em que trabalhava na Folha, vendendo anúncios, morando na casa em Cantagalo, onde está sediado o transmissor da Continental, com sua horta naquele espaço, que quase acabou com nossos radiais, tirando a rádio do ar, no afã de arar a terra? E, por final, na sua metáfora como abrigo, o seu bar, o “Pontal” de Kapi e Aluysio, as estrelas como céu e o Paraíba como colchão, até desaparecer em suas águas — ou não. Mistérios de Neivaldo e sua saga...
Diva Abreu Barbosa, professora e empresária
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Neivaldo entrou na minha vida como saiu: do nada. Ele conseguia os mais reservados documentos, provas usadas na luta ambiental. Mas também era mestre em causar problemas. Um dia, um marido me ligou reclamando que Neivaldo cortejava sua mulher. Perguntei-lhe o que eu tinha com isso. Ele me pediu que eu o controlasse. Neivaldo era incontrolável. Em outra ocasião, ele envolveu o Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza num encontro regional sobre a liberação da maconha. E ecologista já não tinha boa reputação.
Aristides Soffiati, historiador e ambientalista

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