Fabio Bottrel
08/06/2017 18:42 - Atualizado em 13/06/2017 11:52
Anteriormente em Quando Nasce um Ser Humano
“(...) Com o pão na mão sentou-se no sofá para assistir ao que passava na televisão, ainda estava no intervalo e ela se divertia com as propagandas, que já eram de novos produtos, pois não reconhecia a maioria. A programação voltou do intervalo e Jéssica se alegrou ao perceber que era realmente um jornal, olhando a vinheta que precedia a fala dos apresentadores, a qual ela esperava impaciente.
Após algumas imagens de políticos corruptos, a câmera corta e retorna para o jornalista que apresentará mais uma trágica notícia, como todas as outras a se desenrolar até o final do programa.
— Novas descobertas sobre o desaparecimento da médica Jéssica Soares confirmam o sequestro e podem levar ao cativeiro.
O pão esfacela pela boca aberta de Jéssica, surpresa e estática pelo choque da primeira chance real de estar próxima de ser resgatada!”
Pelo retrato falado feito através do depoimento de garçons do restaurante Chateaubriand, onde Jéssica foi vista pela última vez, um rapaz que trabalha nas redondezas da tribo Aruanara identificou o suposto sequestrador desenhado — disse a jornalista com o homem ao lado.
Jéssica se exalta de ansiedade, as investigações estão progredindo e suas chances de sair dali estão aumentando. Ao reparar na fisionomia do rapaz entrevistado, ela o reconhece e se lembra, foi quem lhe gritou avisando que precisava de ajuda com um homem ferido na mata.
— O senhor viu esse homem aqui, neste local? — pergunta a jornalista, direcionando o microfone para que ele pudesse falar.
— Sim. Eu tava voltando pra tribo, por ali — aponta para a mata onde Jéssica entrara para acudi-lo — e de repente escutei o grito d’um moço, gritava muito. Quando eu cheguei perto pra ver, ele tava todo machucado na perna, não conseguia andar direito.
— E esse moço é o mesmo do retrato falado? — A jornalista mostra o desenho para a tela e Jéssica consegue reconhecer o rosto de Tango perfeitamente.
— Sim, era o mesmo rapaz dessa foto. Tava ali, machucado. — Aponta novamente para o local.
— O senhor sabe o que ele estava fazendo, o porquê de estar aqui?
— Não, ninguém nunca tinha visto esse homem aqui, não. Nem eu. Mas você percebia logo de cara que ele não era daqui.
— Por quê?
— Falava diferente.
— Sotaque?
— Ele não tinha o sotaque daqui, não. Mas também não parecia ter sotaque de lugar nenhum. Ele falava diferente porque falava com muita calma, até mesmo quando tava todo arrebentado ali ele tava calmo. Não sei como conseguia.
— O senhor acompanhou esse homem até algum lugar depois?
— Eu tentei levantar ele pra caminhar, mas ele não conseguia e me pediu pra chamar uma médica que tava na tribo. Daí eu corri e chamei essa moça que tá desaparecida.
— Como ele sabia que tinha uma médica aqui? Ela vinha sempre?
— Não, acho que foi a segunda vez que ela tinha vindo. Nem eu fazia ideia de que ela tava aqui. Eu soube que ela veio pra fazer o parto de uma menina que acabou morrendo.
— Você a chamou e ela foi socorrer esse homem dentro da mata?
— Sim. Ela imediatamente entrou na mata junto comigo, amarrou a minha camisa no machucado desse rapaz e depois nós levantamos o homem. Estava chovendo muito e tinha muita lama, o que dificultava mais ainda a gente caminhar com ele, mas conseguimos. Até chegar àquela cabana ali onde ela costumava tratar dos doentes. — Aponta para onde Jéssica suturou a ferida de Tango.
— E depois você não o viu mais?
— Não, nem ela. Eu fui pra minha casa depois, pra lá. – Aponta o homem para um lugar mais distante, mas ainda com vista para onde estavam.
— O carro dela continua aqui.
— Sim, com um pneu furado e outro carro foi roubado. Isso nunca aconteceu, nunca teve um roubo aqui; nós deixamos tudo aberto, sabemos quem anda por essas bandas. Aquele dia foi diferente, os espíritos ruins tavam soltos.
A reportagem mostra a caminhonete estacionada em uma rua da cidade. Jéssica se espanta, era a mesma que ela dirigira. Logo depois, corta para a entrevista novamente.
— Alguma chance de ele ter roubado esse carro e levado Jéssica junto? – Indaga a jornalista.
— Com certeza.
— O que soa bem estranho, pois segundo a reconstituição da polícia, Jéssica foi para a casa e, logo após esse dia, foi ao restaurante por livre e espontânea vontade.
— Ela podia não saber que o carro era roubado e que o homem era um sequestrador. Ele pode ter furado o pneu do carro dela e oferecido uma carona com o carro roubado. E a sequestrado no dia seguinte.
— Mas não faz sentido. Por que ele faria isso?
— Para se aproximar da presa.
Ao fundo da tela, Jéssica percebe a velha cacique olhando fixamente para a câmera, como se olhasse em seus olhos.
— Fernanda Assis para o Jornal da Manhã — diz a jornalista, encerrando a matéria.
A câmera retorna para o apresentador, ao vivo ele anuncia um convidado disposto a esclarecer alguns aspectos do caso e clamar por justiça. Assim que o enquadramento engloba o homem, Jéssica, olhando fixamente para a tela mal sintonizada, consegue identificar os sapatos de couro avermelhado, o terno cinza- chumbo ao qual se pendurava desde criança, a gravata em tons de metal, que combinavam perfeitamente com a camisa clara.
Sentiu o corpo petrificar e um enorme formigamento avassalar seu corpo. Não podia ser real o que estava vendo, pensou estar em outro sonho. O pão que segurava se esfacelou em sua mão nervosa, sua boca não mastigava, não respirava.