"Saúde Pública anda para trás"
28/05/2017 10:37 - Atualizado em 29/05/2017 13:24
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Há mais de um ano anunciei que a cada três semanas faria uma entrevista. Não aconteceu. As intempéries do turbilhão político – jornalisticamente preferenciais – atropelaram a periodicidade da iniciativa e o ‘projeto entrevista’ ficou solto, espaçado em cinco ou seis matérias.
Agora acumuladas, resolvo engatar, inicialmente com uma série de quatro (seguidas, espero) sobre a questão da Saúde – tema que vem ganhando espaço nos debates sociais, quer pela questão da acessibilidade, quer nas práticas destinadas a frear os problemas comuns do dia-a-dia – maus hábitos, exageros estéticos, sedentarismo e alimentação errada – quer, ainda, na relação avanço tecnológico x desumanização da Medicina.
Inaugurando a série, o médico Francisco Lacerda discorre sobre o caos na Saúde Pública, que tanto em Campos como na maioria das cidades brasileiras penaliza a população, sobremaneira os pobres.
Ortopedista, secretário de Saúde no governo Sérgio Mendes (1993-96), Lacerda apresenta o que a seu ver seria os primeiros passos para reverter o quadro negativo e faz incursões, ainda, acerca do paradoxo entre o avanço tecnológico que tanto impulsionou a Medicina e o atendimento cada vez mais precário à população.
Ressalve-se, numa agenda tão abrangente, procurou-se dar realce aos temas que de forma mais aguda afetam a população.
Francisco Lacerda Almeida nasceu em Campos e fez seus primeiros estudos no Colégio Batista e Liceu. A Medicina surgiu por influência de seu pai, que tinha grande admiração pelo médico Lourival Martins Beda.
Cursou a UFF com especialização em Cirurgia Traumato-Ortopédica. Trabalhou na Sta. Casa, PU da Saldanha Marinha e Beneficência Portuguesa. Foi médico legista do Instituto Médico Legal (Polícia Técnica).
Juntamente com os irmãos Bousquet, montou e dirigiu a Clínica Santa Helena – o primeiro centro ortopédico de Campos. É fundador da Unimed e de 1974 a 1994 foi médico do Americano F.C.
Pai de quatro filhos – Laura, Bernardo, Mariana e Felipe Lacerda Almeida – apenas Bernardo seguiu a profissão do pai. É anátomo-patologista da Beneficência Portuguesa de SP, Doutor em Medicina pela USP e professor.
Com 47 anos de profissão, Lacerda trabalha regularmente – agora em ritmo menos acentuado.
Muito embora já o conhecesse, minha proximidade com Lacerda surgiu de forma inusitada. Estávamos em pequeno grupo de amigos num churrasco na chácara do advogado Carlos Alberto Senra, em São Francisco (verão de 1998), quando, ‘besuntado’ de bronzeador, fiz a asneira de saltar alguns degraus numa escada de piso escorregadio. Conclusão: esborrachei no chão, com o pé torcido para o lado de fora. Confusão, corre-corre, e alguém logo disse: – Tem que ir pra Campos, porque aqui não tem recurso.
Murilo Dieguez – que, como todos nós, ia dormir por lá mesmo – pegou o carro e viemos. Não dava pra saber a gravidade (se era torção ou fratura), mas o aspecto não estava lá dos melhores. Pelo celular tentava falar com dr. Lins (Luis Carlos Lins), amigo de família, por quem pretendia ser atendido. Por sorte localizei o médico na Unimed e fomos direto.
Examinou, fez o Raio-X e veio o diagnóstico: tornozelo quebrado dos dois lados. Colocou o pé na posição, enfaixou e pôs (acho) um tipo de tala. Repouso absoluto, pé para cima em tempo integral e a informação de que precisaria esperar uns dias para desinchar, ver como ia ficar, etc... mas não descartou cirurgia. E o ‘não descartou’, para mim, soou como o mais provável.
Para piorar, disse que tinha viagem marcada com a família e “ia me passar para Lacerda”. Nada Bom! Eu, medroso que só, caindo na mão de quem não conhecia direito. Dias depois – novamente com Murilo – fomos para a Clínica Sta. Helena. Lacerda (até então, para mim, doutor Lacerda) investigou minuciosamente, fez lá os exames e sentenciou: cirurgia. Perguntei: Para quando? Resposta: amanhã, no Beda. (Estilo Lacerda: técnico, direto e lacônico. Sem mi-mi-mi).
Teria que colocar um parafuso e não podia esperar porque dificultaria a fixação no osso, etc. Resumo: dei um es-cân-da-lo. Apelei, fiz mil observações. Sugeri isso e aquilo... Perguntei se fosse há 30 como é que seria... Enfim, infernizei o médico que, conhecido como linha dura, resolveu fazer lá um teste (coisa já então em desuso) para ver se comportaria tratamento conservador.
Depois de alguns minutos, com cara de poucos amigos, disse que iria recuar a Ortopedia ao século 19 e a cada dez dias eu teria que tirar o gesso, reapertar para o osso ir chegando e engessar de novo, até colar... E que levaria de 2 a 3 meses. Feliz da vida, topei de cara.
Durante, sei lá, umas 10 semanas, foi feito assim, e Lacerda – o ‘duro Lacerda’ – passou a ir com frequência lá em casa, acompanhando de perto a evolução. Com 4/5 meses eu estava andando normalmente, sem mancar. Terminado o tratamento, quis saber de seus honorários: nada. E assunto encerrado. Isso tem quase 20 anos.
De lá para cá ficamos amigos e eu devendo, ao inflexível Lacerda, a solidariedade e humanidade do médico firme e contundente que, para além das aparências, sabe ser sensível e generoso quando a ocasião permite.
A Saúde é uma das grandes penúrias na maioria das cidades e Campos não é exceção. Até deveria ser, face ao dinheiro dos royalties dos últimos 20 anos. Mas não é. Como ex-secretário da pasta, como o sr. avalia a carência do setor?
Como você disse, não deveria ser. Boa parte das cidades do interior paulista oferece um bom serviço de Saúde. Outros estados também. Mas Campos, ao invés de seguir os modelos de gestão que funcionam, insiste quase em acompanhar ao que lamentavelmente vemos no Nordeste, onde a realidade é outra.
Então a questão é dinheiro e gestão?
Seria simplismo reduzir apenas a isso. Mas, basicamente, sim. O que vemos aqui e em outras cidades (não me refiro a hoje, ontem, ou ano passado... mas aos últimos 10, 15 anos) é a ‘prefeiturização’ do sistema, ao invés da municipalização. A Saúde passou a ser moeda política. O cidadão tem que ligar para o vereador tal, para o secretário A, para o assessor B, e pedir ambulância, vaga na UTI, internação, etc. Quer dizer: virou favor.
E não tem solução? É um círculo vicioso?
Solução tem. Mas é preciso vontade política para mudar o modelo vigente. De imediato, é preciso tirar o paciente do corredor. E como? Como a gente fazia antigamente: o Ferreira Machado atendia a emergência e transferia para os outros hospitais o paciente que não exigia sua permanência ali. Você tirava o risco de morte, de mutilação e encaminhava para os hospitais de apoio: Álvaro Alvim, Beneficência, Sta. Casa e Plantadores.
Mas esses hospitais não tem condição...
Espera! Aí entra a 2ª parte, que na verdade surge como pré-condição: a Secretaria de Saúde, que é uma unidade avançada do Min. da Saúde, tem que negociar a contratualização com os hospitais, tornando os leitos compatíveis com a saúde. Não estou falando em tese: no início dos anos 2000, Makhoul Moussallem propôs ao prefeito que o município pagasse uma segunda tabela correspondente aos mesmos valores daquelas pagas pelo Min. da Saúde. Isso foi feito, e funcionou. Depois reduziu para 80%, mas continuou valendo.
O sr. faz parecer fácil, não?
Estou te dando fatos concretos que qualquer um pode conferir. Agora, se a situação atual não permite, se o município não tem caixa, se nos últimos anos a Prefeitura se endividou, aí é outra história. Mas vamos lá: fui secretário quatro anos e nós nunca tivemos pacientes nos corredores. É outro fato. E por quê? Porque era feito assim. Claro, se acontecesse um acidente com ônibus... um evento de maior proporção, ia pro corredor. Mas coisa pontual, não regra.
E antes disso, lá atrás?
A mesma coisa, funcionando ainda melhor. Por isso é que afirmo que a Saúde andou pra trás. Veja: nos anos 70, Rockefeller criou o PU da Saldanha Marinho e o de Guarus, que representaram, na época, grande avanço em termos de assistência à população. No PU da S. Marinho, a equipe era de 5 a 6 médicos, plantão de 24hs, que atendia 400 pessoas. Tínhamos, então, mais de 40 médicos. Elias Michel Abílio, Fernando Castelo Branco, Geraldo Gusmão, João Castelo Branco, Luis Fernando Manhães, Makhoul, Nilson Cardoso de Souza, Romeo Casarsa e tantos outros...
E isso entrou na década de 80...
E aumentou! A Saúde de Campos deve muito a Rockefeller e a Zezé Barbosa. Quero dizer o seguinte e falo como médico em pleno exercício da profissão: em dois momentos diferentes, eles prestaram enorme serviço à população. Rock fez o atendimento ambulatorial e Zezé fechou o ciclo com a internação. Sob este ângulo, a despeito do avanço que chegou a Campos, o atendimento piorou muito. O paciente tinha médico e tinha hospital. Podia não ter luxo, mas funcionava.
Como assim? Além dos PUs?
Isso. Porque a emergência que antes era no PU da S. Marinho, Zezé contratou a Sta. Casa para fazer em escala maior. A Prefeitura pagava verba para ter médico lá – médico de plantão. O paciente passava pelo PU e, sendo caso de internação, vinha para a Sta. Casa. Antes disso, o hospital não tinha quadros. Nisso aí o trabalho de Ferreira Paes também merece ser lembrado por ter sido de grande importância.
O sr. está particularmente antenado com a Medicina de S. Paulo, que tem os centros mais avançados do País. Pergunto: o sistema hospitalar de Campos está engatinhando?
Não. Muito ao contrário. Primeiro, as unidades particulares daqui são bastante avançadas. E também as públicas estão em patamar elevado. O que se discute não é tecnologia ou sintonia com os grandes centros, mas atendimento. Primeiro, é preciso entender que 80% dos problemas de saúde são básicos, perfeitamente resolvidos nas UBS. Na emergência, só devem estar os médicos com perfil de cirurgia e clínica. Os especialistas, só nos hospitais.
E o segundo ponto?
Aí você tem uma junção: 1) Não há solução sem que o município arranje verba para ativar os leitos que estão vazios. Mas a tal verba que falei, Zezé pagava em forma de 2ª tabela. E isso quando não tinha royalties. Se agora não há recurso, tem que fazer o possível com a verba escassa do SUS. É necessário ativar a emergência da Sta. Casa e aproveitar sua estrutura para desafogar o Ferreira. É uma questão de gerenciar prioridade. Afinal, como estão se virando os municípios que não têm royalties? 2) Há, também, um outro aspecto que vem de longe e de natureza conceitual: antes, seguindo a escola europeia, o médico era um generalista – tinha conhecimento vasto. Hoje, passamos ao modelo americano, da especialização, que limita a um campo específico.
E isso recai negativamente sobre a população.
Sem dúvida. O que o especialista faz hoje é praticamente o que o médico generalista fazia antes. Em outras palavras: cada vez mais, sabem mais, sobre menos. E quanto menor for o círculo de ação do médico, menor será o atendimento, afetando diretamente os mais carentes.
Mas, e o avanço tecnológico? Não consegue compensar essas perdas?
São coisas distintas. A tecnologia trouxe um grande avanço para a Medicina... para os métodos de tratamento. Mas não se confunde com atendimento. O Ferreira Machado, por exemplo, conta com equipamento de alta tecnologia, mas a Medicina não chega à população no nível que deveria. E tem outra coisa: o lado ruim da tecnologia é que ela desumanizou a Medicina.
Seria o dano colateral de algo que vem salvando vidas?
Sim, sim. Espetacular. A rapidez, a eficiência, a precisão e acima de tudo a luz sobre o que antes se achava escuro. Mas não é tudo. Fazendo uma caricatura, a máquina que já dá o diagnóstico, amanhã vai estar prescrevendo o tratamento? Seria o ‘médico-caixa eletrônico’: por mais preciso, ágil e avançado, – ainda assim um robô, incapaz de captar as variáveis e a complexidade do ser humano. O não-pensante substituindo o ser pensante me parece coisa de ficção.
O sr. contou que a escolha pela Ortopedia se deu por ser uma atividade concreta, pragmática e artesanal. E que pelos traumas produzidos, é a primeira trincheira da emergência. Que ocorrência o sr. guarda como marcante?
Foram muitas. Uma, em particular, foi sobremaneira gratificante. Foi logo assim que voltei a Campos e fui trabalhar na Santa Casa, ainda quando tinha os indigentes e não existia o SUS. Uma assistente social, chamada Maria Selma, chegou e disse que me traria uma paciente. Não deu maiores detalhes, apenas que viria estar comigo num determinado dia. No tal dia ela chegou na sala, interrompeu o atendimento, e me falou que a pessoa havia chegado. Quando abri a porta do consultório... que tinha um corredor muito longo, na frente da porta não tinha nada. Quando eu levanto a cabeça, para o corredor, tinha uma adolescente, caminhando de joelhos... andando de joelhos. Eu fiquei surpreso com aquilo, atendi a paciente e internei. Era um caso muito grave de poliomielite, de sequela paralítica. Ela ficou internada na Sta. Casa durante dois anos. Eu fiz oito cirurgias nela. E no dia da alta chamei Maria Selma, e disse: – A sua paciente vai embora agora. E ela saiu da minha porta andando. [Lágrimas...]
Guilherme Belido
Guilherme Belido/Folha da Manhã

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