Arqueologia literária
Arthur Soffiati 23/02/2017 19:23 - Atualizado em 24/02/2017 14:49
Poucas pessoas conhecem Leonardo Mota. Bem poucas lembram dele. Muitas nunca ouviram falar em seu nome. Ele nasceu em 1891 e morreu em 1948, merecendo uma crônica de Rachel de Queiroz, quando de seu falecimento, publicada no jornal “O Povo”, de Fortaleza, em 15 de janeiro de 1948.
Leonardo Mota, conhecido intimamente como Leota, foi folclorista. Hoje, ele seria estudioso da cultura popular. O folclore foi um campo de estudo muito importante no Modernismo. Entendia-se que ele permitiria conhecer a cultura popular brasileira e conferir identidade cultural do país. Mário de Andrade foi um grande estudioso de folclore, pesquisando e escrevendo vários estudos. Luís da Câmara Cascudo é considerado o maior folclorista brasileiro. Esse tempo passou.
Leonardo Mota deu a sua contribuição para o conhecimento da cultura popular profunda do Brasil com os livros “Cantadores” (1921), “Violeiros do norte” (1925) e “Sertão alegre” (1928). Ele escreveu mais. Estes são seus títulos mais conhecidos. O autor cearense enveredou pela literatura, o que era comum no seu tempo. Normalmente, os intelectuais não tinham nem a formação nem o ranço acadêmico de hoje. Eles se interessavam por muitas áreas e produziam em vários campos.
Leonardo Mota escreveu um conto que caiu no esquecimento. Ele foi publicado num jornal em 1920 com o título de “Brutalidade” e ficou esquecido por muito tempo. Graças ao empenho de Mimosa Mota Fernandes, filha do escritor, e do estudioso Jorge Brito, ele foi redescoberto num verdadeiro trabalho de arqueologia literária.
Desde os anos de 1970, venho escrevendo sobre o alcance da arqueologia. Tradicionalmente, esta técnica (melhor que ciência) dedica-se a desenterrar monumentos de arquitetura, peças de escultura, instrumentos de trabalho, vestígios de atividade econômica e esqueletos que permitam alguma interpretação cultural. Por que não telas de pintura, documentos escritos e obras literárias? Meu entendimento é o de que a arqueologia deve recuperar a cultura material de um povo para reconstruir, dentro do possível, sua cultura imaterial. Pintura, literatura e música, se não forem registrados em matérias resistentes, desgastam-se quando em meio adverso. Mas podem resistir em coleções e arquivos.
O resgate de um conto como “Brutalidade” permite conhecer mais a vida de Leonardo Mota e o espírito de seu tempo no Ceará e no Brasil. Esta foi a intenção da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, instituição sob a regência do notável José Salles Neto. A CBB agrega um grupo de pessoas que amam a literatura brasileira e seus mistérios. Considero-me um amante privilegiado da literatura por fazer parte da Confraria e receber seus livros.
Sim, a CBB tem uma editora e lança livros para seus confrades e confreiras. Os livros são verdadeiras obras de arte. Geralmente, um estudioso é convidado a analisar as obras escolhidas por todos os sócios. O lançamento de “Brutalidade” foi uma surpresa de José Salles Neto para os sócios. O conto não preencheria um livro se publicado isoladamente. Mas ele é também contado com as xilogravuras do grande artista José Lourenço, famoso por manter viva a arte da xilografia nordestina. Lourenço não ilustra o conto. Ele o narra paralelamente com sua arte.
A apresentação do conto foi feita por Mimosa Mota Fernandes. A introdução foi escrita por Jorge Brito. Sânzio de Azevedo incumbiu-se de analisar o conto. Coube a Gilmar Carvalho examinar o trabalho de José Lourenço, que produziu mais de 80 xilogravuras para o livro, das quais apenas 51 puderam ser aproveitadas. O livro em si já é uma obra de arte, como, aliás, todos os lançados pela Confraria. O crédito final é Brasília: Edições da Confraria, 2016. 15º livro do ano.
“Brutalidade” foi escrito num ambiente pré-modernista. Ainda vigoravam o realismo e o naturalismo na literatura. O primeiro expõe a realidade com tom moral. “O crime do padre Amaro”, de Eça de Queiroz,talvez seja o exemplo clássico do realismo. O próprio título já contém uma censura. O padre Amaro cometeu o crime de carnalidade com Amélia. Aproveitou-se de seu corpo para satisfazer seus desejos libidinosos, enquanto Amélia sonhava com algo mais. Já o naturalismo expõe a realidade sem censura, como em “O cortiço”, de Aluísio Azevedo.
O conto de Leota me fez lembrar os contos iniciais de “Tropas e boiadas”, Hugo de Carvalho Ramos, cuja primeira edição data de 1917. Quase contemporâneo, portanto, de “Brutalidade”, publicado em 1920. Primeiro, os autores pintam a paisagem em que vai se desenrolar o drama. No caso de Leonardo, as serras do Ibiapaba e das Matas, a vegetação ressequida de setembro, o riacho, o açude do Doroteu, os canaviais, os mandiocais. Na paisagem, insere os personagens mais fortes: Marçal, Ananias e sua mulher Catarina. Embora vigorasse ainda a visão de que a mulher é inferior ao homem (“Mulher era que nem pau de porteira: em toda parte se encontrava”; “Mulher e lama é no meio”). Catarina é virtuosa. Ela percebe que Marçal a deseja. Seu corpo tem formas, curvas e volumes que a caracterizam como bela mulher camponesa. Seus seios são como “pomas bem talhadas” Marçal não resiste aos encantos dela. O caso termina em sexo e sangue, com “descargas de esfaimada libidinagem.”
O regionalismo brasileiro, em sua primeira fase, é fortemente marcado pelo naturalismo e pelo realismo. Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Bernardo Élis e outros nomes ilustram bem essa fase. A partir de 1945, o onírico se imiscui no regional com os nomes de Murilo Rubião, João Guimarães Rosa e José J. Veiga. Depois, o regionalismo se mistura com o urbano, como nos livros de Ronaldo Correia de Brito e Maria Valéria Rezende.
Pena que os possíveis leitores desse artigo não façam parte da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Eles não poderão ler o conto nem degustar o precioso livro. Desde já, adianto que não empresto meu exemplar.

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