De repente, 70
Arthur Soffiati
Aos 70, enfrento alguns problemas existenciais. O corpo não vai tão mal. Embora eu tenha sofrido uma isquemia, mais por herança genética que por hábitos de vida, noto que meu corpo está melhor hoje do que antes do acidente. Faço exercícios físicos pesados para a minha idade. Minha dieta é bastante balanceada. Mas minha dependência de medicamentos é considerável. Caí nas garras de médicos e creio que não sairei mais.
Noto uma defasagem entre meu corpo e minha mente, meu espírito, se preferirem. Meu corpo envelhece, mas meu espírito não o acompanha. Ele estranha o tratamento que as pessoas me conferem como professor idoso e respeitável. O tratamento de “senhor” me soa muito esquisito. Na minha mente, eu sou “você”. Minha curiosidade aumentou com a idade. Aposentei-me do magistério depois de 40 anos em sala de aula não por cansaço da velhice, mas para me dedicar a meus projetos. Hoje, leio muito, estudo muito, escrevo muito. Ainda saio em explorações por nossa região.
Minhas reflexões, contudo, levaram-me ao desencanto com o mundo. Atualmente, sinto-me mais situado na minha história e na história do mundo. Era para eu me sentir melhor, mas estou triste. O mundo não é ruim porque sou pessimista. Sou pessimista porque ele é ruim. Não gosto dos otimistas. Na tentativa de melhorar o mundo, eles o destroem mais ainda.
O maior problema que enfrento decorre da defasagem entre mente e corpo. Sei perfeitamente que estou mais perto da morte natural do que aos 51 anos de idade, quando escrevi uma crônica muito melancólica e, ao mesmo tempo, cheia de humor. Dezenove anos depois, a presença da morte não se contenta com consolos fáceis. Ela está a minha espreita. Embora com minha saúde monitorada, posso sofrer um acidente repentino. Por mais longevo que seja (algo em que não acredito, dada a minha herança genética), a morte é inevitável. Não é medo dela propriamente o que sinto. Eu gostaria de viver o suficiente para realizar metade de meus planos. A totalidade deles é impossível porque eles aumentam diariamente. Nem a metade posso medir por não saber a dimensão do todo.
Estudei e ainda estudo muito religiões e ciência. Meu parco conhecimento do mundo não me permite a conversão a qualquer religião. Por um lado, gosto do meu agnosticismo como atitude de sabedoria diante do universo. Creio que respostas provisórias para as minhas inquietações intelectuais com ele. Por outro lado, a falta de convicção em alguma crença sobre a sobrevivência do espírito após a morte do corpo me faz falta. Nem o mais convicto religioso pode garantir que sua alma sobreviverá à morte do corpo. Mas a esperança consola.
Pessoas amigas tentam me ajudar dizendo que eu devo crer no além. Ter certeza nele. Fico com a impressão de que ter fé é fácil. Parece que posso comprá-la no comércio. Uma conversão minha nesta idade pareceria surpreendente a mim e aos outros. Ter fé não depende da vontade, pessoal. Aconselham-me também viver um dia de cada vez. Não consigo. Viver um dia de cada vez é esquecer minha história e a história na qual estou inserido. Como começar do zero ao acordar? Quem me dá tal conselho não o segue. Mas se aproxima dele por não mergulhar profundamente na sua própria vida e no mundo. Cada vez mais, encontro pessoas superficiais que vivem por viver. São pessoas que fazem da vida um selfie.
Agradeço, amigos, mas não consigo ser um vivo-morto, um zumbi. Necessito viver os milênios, os séculos, os anos, os meses, as semanas e os dias. Não consigo viver sem passado nem me despreocupar do futuro. Aos 70 anos, voltei, de certa forma, aos meus 16. Na minha adolescência, eu queria me dedicar à música erudita, à literatura, às artes, ao estudo das ciências e da filosofia. E escrever muito. Só agora estou podendo. E a morte está a minha espreita. Gosto deste mundo, apesar de tudo. Se venho de outro, não me lembro dele. Se vou para outro depois da morte, não tenho certeza.
Não sou feliz, como pessoas amigas desejariam para mim, mas não sou infeliz. Felicidade permanente estressa. Infelicidade permanente é depressão. Vivo momentos de felicidade e de tristeza. Não ostento felicidade falsa. Não gosto de Mário de Andrade porque ele me ensinou o interesse por muitos campos do saber. Gosto dele por ter aptidão ao saber múltiplo. Não gosto de Edgar Morin por ter me ensinado a complexidade, mas por encontrar nele um intelectual que atenua a minha profunda solidão.
Concluo invocando Denis Diderot, embora eu não seja um iluminista. Estou em meio a uma floresta numa noite escura. Só tenho um lampião para iluminar o rumo. Aparece alguém me dizendo que posso encontrar melhor o caminho se apagar o lampião. Desculpem, amigos, continuarei com a lanterna acesa.