Vida de cão! Antigamente era coisa ruim...
15/12/2016 19:43
Divulgação
A dama e o vagabundo/Divulgação
Sou de um tempo em que um desenho animado do tipo “A Dama e o Vagabundo” já revelava a desigualdade que havia entre os cães. Cães ricos com requintes aristocráticos de tratamento e postura, contrapondo-se às miseráveis condições dos cães vadios, de rua... E é claro que a Walt Disney Corporation encarregava-se de romantizar, às lágrimas, o mundo das “barreiras sociais” entre o mocinho charmoso vira-lata e a requintada dama, da terna e açucarada história... que tem que terminar com um final feliz para fortalecer a ideologização de que na sociedade desigual das classes, não há limite para o amor. E cá pra nós: como isso alimenta as ilusões, as fantasias do mundo do faz de conta que...
Mas não é exatamente sobre isso que desejo escrever, ainda que também o seja.
É que há dias, próximo da minha casa, acompanhei movimentos para a inauguração de um espaço cuidadosamente preparado há meses. Sempre quis saber o que seria ali... Colocaram uma logo meio que indefinida, num simbolismo que aguça a curiosidade.
Uma noite, ao retornar da Universidade, percebi grande movimento no local. Era a inauguração. Homens de preto a postos, flashes, luzes, câmeras de tv e dos fotógrafos da cidade, homens e mulheres bem vestidos, garçons e tudo o mais para uma noite de glória como aquela. Finalmente decodifiquei a logomarca. Tratava-se de uma casa de massagens, depilação, maquiagem, manicure (ou paticure?), corte, banho e embelezamento geral — nos trinques — top de linha... para cachorros e cadelas (nossa! que modo feio de falar...).
Disfarçadamente dei uma espiada nos preços e constatei que o negócio era pra cachorro de madame, como se dizia antigamente.
Inevitavelmente, contrastando com aquele ambiente encantado do grand monde social, escutei na memória musical Eduardo Duseck cantando “Troque seu cachorro por uma criança pobre...”, sucesso dos anos 80. Que fique bem claro: não tenho nada contra os adoráveis cãezinhos de estimação. Tenho alguma coisa contra os homens e as mulheres que criaram e realimentam uma sociedade com esse nível de sofisticação da desigualdade social, a ponto de vida de cão tornar-se tão ou mais importante do que vida de gente! Ou dito de outra forma: o cão é a dama e o homem pobre, miserável e excluído, o vagabundo...
Como se não bastasse a desigualdade aviltante entre seres humanos, esse modelo de sociedade capitalista cada vez mais institucionaliza a mercantilização do mundo da vida, a banalização da diferença de tratamento entre os seres, dimensões nunca imaginadas da consagração da desigualdade! Ora, homens e mulheres desiguais socialmente falando, hierarquizados nas relações por conta do capital ou do trabalho, isso, é coisa antiga. Agora, estão criando uma parafernália de produtos e serviços (à custa do agravamento das condições naturais do planeta) no sentido de, a pretexto de “tratar bem”, estabelecer novas hierarquias “sociais” entre cães tratados a pão de ló, seus proprietários, e os outros, os sem esses equipamentos modernosos, pessoas e animais.
Há cães famintos, abandonados à sua sorte, perambulando pelas ruas, com olhos tristes e pelo maltratado, ossos expostos, às vezes até apedrejados e expulsos a pontapés pela simples presença considerada inconveniente em certos lugares. E nesses mesmos lugares os ditos cachorros e cadelas de madames e future madames ganham afagos e carinhos de vendedores e donos de lojas, “que gracinha”, “fofinho”, “coisa linda” e por aí vai...
Também há crianças, adultos e idosos estigmatizados por serem pobres, maltrapilhos, olhos fundos, cuja presença, por si só, causa incômodo e enseja reações que vão da indiferença, nojo à violência... mundo cruel, como se dizia há algum tempo.
Por essas e outras, alguns filósofos referem-se aos nossos tempos como tempos de deslavado cinismo. O cinismo indica o predomínio de uma ética individualista e predatória, do eu, eu e eu, e dane-se o outro. Opõe-se ao civismo, que indica um padrão ético de cidadania e solidariedade... São pequenos atos, atitudes e hábitos que revelam o quanto as pessoas estão se fechando em si, buscando compensações fora das possibilidades de uma vida humana mais fraterna e solidária, o que, evidentemente, não exclui o amor aos animais... Famílias simples, humildes e pobres, estabelecem relações muito bonitas com seus cães, cuidando bem deles, com carinho e atenção, sem recorrer a esses apelos consumistas que cada vez mais envolvem os ricos e segmentos da classe média reprodutora dos padrões da vida burguesa. Registre-se, ainda, a existência de pessoas com espírito franciscano, recolhendo e tratando de animais abandonados, doentes, fazendo isso com sacrifício pessoal. Aplausos! Também sei de manifestações de carinho e amor por parte de quem, não sendo rico, gasta até o que não pode para salvar a vida de seu cão protetor da casa e da família, em tratamentos ou cirurgias especializadas. Disso tudo eu sei e também das extravagâncias e compensações através de exibicionismo que tem hora que não dá pra entender! Mas, cada um tem o direito de viver como quiser viver, e o direito de definir suas prioridades na vida, não é mesmo?
Por fim, de volta ao começo: antigamente, falar Ô Vida de Cão! significava dizer Ô Vida Ruim! Eita Vida Dura! E hoje? Vida de Cão é ruim? Depende... às vezes pode ser mais refinada do que a vida de muita gente. É... Mundo cão!
*Por Hélio Coelho, professor da Universidade Federal Fluminense (Serviço Social-Campos), da Faculdade de Direito de Campos(Uniflu I), do Programa de Formação Docente da Ucam, presidente da Academia Campista de Letras

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