A Brisa que Leva os Desejos
08/12/2016 18:07
Anteriormente em Quando Nasce um Ser Humano
— Eu quero um filho.
(...)
— Jamais sairá de mim algo que lhe pertença, nunca poluiria o meu corpo com tanto lixo.
(...)
Jéssica não se mexeu, escutou com delicadeza cada tecla tocada da Bagatelle de Beethoven, sentiu o vento sobre sua pele com maior intensidade, deixou a última lágrima escorrer antes que Tango levantasse a mão pesada como se segurasse um bloco de mármore e lhe acertasse a cabeça. O barulho da pancada ritmou-se à composição, Jéssica não fechou os olhos e como se estivesse levitando caiu sobre o chão frio, sentiu sua cabeça quicar sobre o piso de madeira. Por um breve instante, experimentou o êxtase, não sentiu dor, não lembrou onde estava, tudo desaparecera e aquele sofrimento fora embora. Estava consciente até Tango se aproximar novamente e lhe aplicar o golpe final.
Jéssica abraçou a escuridão.
Divulgação
Flor ao vento/Divulgação
Capítulo 11
O embaçado da vista logo se desfez e deu lugar à intensa dor de cabeça ao acordar em cima da cama, no mesmo cubículo, trancada. Buscou na memória a noite anterior e se lembrou perfeitamente de tudo o que acontecera. Levantou-se, foi ao banheiro e olhou na lasca de metal; seu rosto parecia normal, até levantar o cabelo perto da orelha e notar uma grande mancha roxa ao lado de sua cabeça, suavemente passou a mão por cima e sentiu uma profunda dor permear-lhe a pele. Apoiou as mãos na pia e o corpo nos braços, com a cabeça abaixada tentou não se desesperar e raciocinar.
Sentiu asco ao ter pedido a Deus para lhe ajudar, se o próprio homem que a sequestrara era um dos seus servidores, Deus aparentava estar do lado contrário e se sentiu culpada ao recorrer a ele, não havia mais para onde ir ou para quem pedir, estava só.
Abriu a torneira e jogou a água fria inundando a pia sobre o machucado e sobre a nuca, deixando a água escorrer sobre seu cabelo. Escutou o rugido da porta se abrir e se pôs alerta. O que poderia ser dessa vez?
Tango entrara no quarto trazendo consigo uma bandeja de almoço com as sobras da comida de ontem, que estavam deliciosas por sinal.
Jéssica decide não sair do banheiro, mas não escuta o bater da porta enquanto não sai. Após um intervalo de tempo, percebe que Tango não irá embora enquanto ela não sair do banheiro. Com medo d’aquele monstro a segurar e abusar dela à força, nota também que permanecer no banheiro poderia piorar as coisas, pois ali não estaria protegida, além de criar um sentimento de afronta. Abre a persiana que separa o banheiro e entra no quarto, percebe Tango em pé, de frente para a cama, onde repousava uma bandeja com comida e um copo de plástico com suco de caju.
– Bom dia.
Com o cumprimento feito pelo homem a médica percebe que ainda é de manhã.
– Gostaria de me desculpar pelo que tive de fazer ontem. Não havia planejado que a nossa noite terminasse daquela maneira, mas... espero que não tenha lhe causado nenhuma dor hoje.
Jéssica esconde o hematoma com os cabelos encharcados, ainda pingando algumas gotas pelo corpo. Percebe pela fala de Tango que nem tudo ocorre como ele havia planejado; por mais perfeccionista que fosse nos seus planos, a vida pode arrumar uma maneira de surpreender.
– E quanto ao assunto que conversamos ontem, você poderá sair junto com o seu pai, após me dar o meu filho. Gostaria que você ficasse também, mas essa escolha é sua.
A jovem se impressiona cada vez mais com a loucura de Tango, como ela ficaria naquele lugar presa e apanhando? É completamente insano ele não perceber a insensatez daquela situação. Já havia falado que não lhe concederia tal filho, mas preferiu ficar calada para não instigá-lo ainda mais.
– Eu já esperava que recusasse de início, mas você perceberá que sou um bom homem e o meu pedido não lhe causará nenhum transtorno. Porém, a cada dia de sua recusa, seu pai ficará sem comer.
– Se ele ficar sem comer, eu também fico.
– Você não me é útil sem saúde.
– E você não é nada sem meu pai – responde Jéssica, enfrentando Tango, que deixa o quarto sem lhe responder, trancando a porta.
***
Já se passaram quatro dias e Jéssica agoniza de fome novamente, sequer tocara na comida, foram raras as vezes a beber algum líquido. Emagrecera drasticamente, conseguia ver os ossos da clavícula, que aparentavam saltar sobre a pele e ao passar as mãos sobre o contorno da face percebia a finura do rosto.
Preocupava-se com o seu pai, o corpo idoso era muito mais frágil que o dela para aguentar tamanho desgaste. Repentinamente escutou a porta ao lado se abrir com um arranque estrondoso. A confusão de sentimentos na sua cabeça a atordoou, pois não sabia se ficava feliz ou receosa já que não ouvia aquela porta abrir há tempo, talvez Tango fosse alimentar seu pai e acabar com toda a agonia desses dias.
Colou seu ouvido junto à parede fria e tentou escutar o que se passava ali, mas só havia uma voz e aparentava ser do sequestrador. Não conseguia distinguir as vozes muito bem, pois a parede era espessa – típica de casa antiga – e distorcia os timbres. Mas sabia pela calma da fala que era Tango quem estava falando algo. Subitamente ela escuta o que aparenta ser a voz de seu pai, gritando! Pedindo para que Tango não se vá! Logo após um baque de porta os gritos se silenciam, talvez tivesse caído em prantos, sofrendo.
Jéssica escuta os passos vindos em sua direção até perceber as sombras dos pés debaixo da porta novamente. Escuta o tilintar das chaves junto à maçaneta ao destrancar a porta e revelar Tango com uma fisionomia séria, como se tivesse acabado de sair de uma briga. Sem o mínimo de paciência, nem mesmo entra no quarto, lança um olhar feroz para a bandeja de comida impecável, da mesma maneira que a trouxera. Repara na magreza de Jéssica e nos ossos tremendo com o frio, agachada no canto do quarto ao lado da cama, abraçando a si mesma atrás dos joelhos. Percebe seus cabelos selvagens, quebradiços, sentiu o odor de sujeira humana penetrar suas narinas ao abrir a porta do quarto, o estado era degradante. Uma enorme vontade, involuntária, que Jéssica não conseguia segurar – mas precisava – começou a surgir dentro dela. Lutava contra si mesma, mas não aguentou, Jéssica espirrou e demonstrou com as suas olheiras seu estado deplorável.
Tango não disse nada, apenas fitou-a com um olhar que lhe causava agonia, fechou a porta deixando pelo quarto e mente da mulher sofrida todo o seu silêncio perturbador.
Jéssica temeu pelo seu estado fragilizado, temeu por Tango achá-la inadimplente quanto às suas expectativas. Se ele desistir do que se propusera a fazer e simplesmente me descartar e substituir por outra mulher? O modo de descartá-la não seria deixando seu pai e ela irem embora. Temeu pela vida de seu pai, mais do que pela sua.
Um suave ruído a tirara da rotina de seu pensamento. Vinha do teto, mas aparentava estar por todo o lado. Barulhos esporádicos, leves, tornando-se rápidos, contínuos, frequentes, universais: era a chuva. Preencheu todo o seu ouvido com o desejo de estar fora daquele lugar e correr pela chuva como uma criança. Senti-la na pele, abrir a boca e deixar que ela deságue toda a sua paz dentro do seu corpo. Deitou na cama e evitou fazer qualquer tipo de barulho para que escutasse perfeitamente cada gota, desejando cada uma para si.
Lembrou-se das palavras da velha cacique ao levantar o menino para a noite: “Mensageiro que voa em dias chuvosos repleto de dor”.
Desejou encontrar esse mensageiro e que ele voasse com toda a sua dor pelos dias chuvosos, abriu os braços e deitou na brisa que carrega os desejos.
Adormeceu preenchida de sonhos.
***
Uma forte contração nos seus músculos do braço e uma enorme pressão sobre sua barriga a acordou, não conseguia enxergar direito, mas logo percebeu Tango sobre ela. Seus movimentos não indicavam tentar algo sexual, mas imobilizá-la. Pensou ali que seria estrangulada e logo após descartada. Lutou pela sua vida, debateu-se, tentou chutar a cabeça do seu opressor, mas não alcançava e mal podia se mexer, pois era muito mais forte do que ela. Jéssica babava de nervoso tentando sobreviver, raspando suas costas sobre a cama consegue girar e percebe uma seringa na mão de Tango, pronta para ser aplicada. Debate-se com mais voracidade para aquela agulha não penetrar a sua pele e lhe preencher com a morte. Chorava, esperneava, gritava, babava, implorava para que Tango não a matasse, mas não teve jeito, ele imobilizou com mais força o seu braço, apertando, prestes a quebrá-lo; a dor vibrou por todos os seus ossos. Ao sentir o seu corpo umedecer-se com o líquido vermelho injetado pelo seu malfeitor, Jéssica para de espernear, não há mais jeito.
Tango se levanta calmamente carregando a seringa vazia e antes de fechar a porta, diz:
— Isso é um suplemento alimentar, substituirá suas refeições. A cada dia que você ficar sem comer, eu lhe aplicarei uma.
Jéssica percebe-se sem saída, seu pai iria desnutrir-se até a morte enquanto ela recebe vacinas.
— Espere!
Clama Jéssica desesperada. O seu maior medo não era a proposta de Tango, mas o seu consentimento, que estava prestes a se concretizar.
Sentiu seu sangue se tornar ácido ao expressar tais palavras, não sabia se era o efeito da vacina ou o estresse, ao saírem de sua boca palavras jamais libertas do inferno mais profundo que já enfrentou.
— Eu te darei um filho, contanto que você liberte meu pai.
— Não posso libertá-lo.
— Isso não é uma escolha. É a única maneira de você conseguir o que quer ou morreremos nós dois.
Tango fixa seus olhos nos olhos de Jéssica, logo desvia como se estivesse numa profunda reflexão.
— Ok.
Esboça um ligeiro sorriso de felicidade no canto da boca.
— Voltarei hoje à noite. Até lá coma alguma coisa e se arrume.
Continua...
* Por Fabio Bottrel

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