Murilo Rubião e o surrealismo na literatura brasileira
* Arthur Soffiati 27/10/2016 19:57
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Murilo Rubião/Divulgação
Ainda não havia eclodido o realismo fantástico na literatura hispano-americano quando o mineiro Murilo Rubião publicou seu primeiro livro de contos surrealistas, em 1947. Ele já vinha trabalhando seus contos nesta vertente antes de se projetar como o maior escritor surrealista do Brasil. Tanto assim que Mário de Andrade e ele discutiam o maravilhoso em cartas reunidas no livro “Mário e o pirotécnico aprendiz” (São Paulo: Giordano, 1995), em que a figura mais citada é Kafka.
O surrealismo aparece na literatura brasileira de forma esporádica. Evoquemos Machado de Assim e a rapsódia “Macunaíma”. De forma sistemática, acho que só com Rubião, nascido em Carmo de Minas, em 1916. Sua obra está sendo festejada neste ano por seu centenário de nascimento. Tanto assim que veio a lume uma nova edição de seus contos completos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016).
Rubião foi um típico mineiro. Tímido, retraído e meio solitário, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade. Foi um solteirão que se dedicou à literatura e à vida pública. Foi oficial de gabinete de Juscelino Kubitschek, quando governador de Minas Gerais. Conheceu por dentro a rotina da burocracia, que retratou criticamente em vários de seus contos.
Seu primeiro livro, “O ex-mágico”, de 1947, aponta a trajetória que ele seguiria no futuro sem arredar pé um milímetro dela até sua morte. No geral, seus contos são ambientados em pequenas cidades do interior. Mesmo não esclarecendo a localização delas, parecem cidades mineiras. De um meio provinciano na sua cotidianidade, nasce o absurdo com naturalidade. Esse talvez seja o traço mais característico de seus contos, pois nunca praticou outro gênero. No conto “O ex-mágico da Taberna Minhota”, ele escreve com toda a serenidade do mundo ter se surpreendido “o retirar do bolso o dono do restaurante”, dono este que “não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó (...) “Quase sempre, ao tirar o lenço para assuar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso.” E já estocando o ambiente burocrático, “Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia.” Embora vivendo em ambiente burocrático, como Drummond, Rubião denuncia que a burocracia esteriliza a magia da arte.
No conto “Bárbara”, a mulher enorme de gorda, enche-se de desejos durante a gravidez, não poupando o marido com seus pedidos. Ela queria coisas insólitas, como o oceano e um exemplar de baobá. O marido acaba entrando em falência para atender seus desejos. “... como o dono do imóvel recusasse vender a árvore separadamente, tive que adquirir toda a propriedade por preço exorbitante.” De tal forma a mulher engordou que era preciso um grupo de homens de mãos dadas para circundar seu corpo, como o tronco de um baobá.
No conto “A cidade”, ele viaja como único passageiro de um trem, perguntando, na cidade morta onde está a um delegado. Este lhe responde: “— Isso não lhe podemos revelar agora. Poderia prejudicar as investigações.” No conto “Teleco, o coelhinho”, o pequeno animal pode se transformar num grande, como uma girafa. Existe uma ponta de influência da metamorfose kafkiana no conto “O lodo”, puro absurdo. Novamente a crítica à burocracia em “A fila”, no qual uma fila interminável não permite a um demandante chegar ao chefe.
Além da naturalidade com que o absurdo irrompe nos seus contos, há, em Murilo, uma ponta de melancolia. Essa ponta parece clara no conto “Os três nomes de Godofredo”. É a melancolia que nasce da solidão e da rotina das pequenas cidades. Em diversas passagens, Rubião escreve de maneira que hoje seria tachada de politicamente incorreta. Há também contos completamente desconcertantes, como é o caso de “D. José não era”. Na verdade, o surreal, nesses contos, não nasce das palavras e das frases, mas do conjunto do conto. Seu autor tem veleidades machadianas. Ele busca a perfeição e reescreve suas narrativas à exaustão.
Não falta a Murilo Rubião o senso de humor, que se pode depreender da leitura de “O bom amigo Batista”. Trata-se de um amigo tão leal que rouba do outro a sua namorada e o seu emprego, sempre alegando que seus atos sórdidos visam proteger o amigo. O abismo e o labirinto estão presentes em vários contos, mormente em “Os comensais”. Sua prosa sempre sóbria na concepção como nos temas, evita as licenciosidades da literatura atual. Só nos últimos contos, ele se permite abordar temas como sensualidade e sexualidade. Em “Aglaia”, por exemplo, ele enfoca a vida de um casal que usa inutilmente todos os meios para evitar filhos, inclusive a vida em quartos separados e sem contato sexual.
Enfim, Murilo Rubião é pioneiro na literatura fantástica brasileira. Quando ele publicou seu primeiro livro, Jorge Luis Borges já escrevia, mas ainda não havia se projetado como escritor do absurdo. “Bestiário”, primeiro livro de Julio Cortázar nesta linha, data de 1951. O de Rubião data de 1947. Ele se filia à tradição representada por Borges, Cortázar, Juan José Arreola e Gabriel Garcia Márquez. Estes autores são conhecidos nos seus países e em vários outros. Contos de Rubião foram traduzidos para várias línguas, mas ele ainda é bastante desconhecido no Brasil. Em “O sucesso”, mais recente livro de Adriana Lisboa (Rio de Janeiro, Alfaguara, 2016), o conto “Circo Rubião” homenageia o escritor mineiro, mas, nos esclarecimentos finais, não há nenhuma menção a ele.
Sua obra é pequena. Seus contos são enxutos. Neles, não existem rupturas bruscas na sequência narrativa ou efeitos de suspense no leitor. O fantástico está no cotidiano.
Poucos seguiram sua trilha. Aponto os nomes de Campos de Carvalho e de José J. Veiga. Do primeiro, eu diria que apenas “O púcaro Búlgaro” (Rio de Janeiro: José Olympio, 2008) envereda pelo surreal, mesmo assim em tom de piada. Do segundo, existem abordagens fantásticas em contos e romances, mas elas parecem ser mais fábulas políticas. Em minha opinião, nenhum alcança a platitude sóbria de Rubião.
Na nossa província, creio que ele é também um grande desconhecido, embora o acesso a sua pequena obra (reunida num livro de 250 páginas) seja bastante fácil. Não lemos ou lemos pouco. Rubião não entra nas nossas magras listas de leitura.
* Arthur Soffiati

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